30.7.04

Minhas Inspirações II - Fernando Pessoa

(e chega -- não vou ficar aqui postando coisas de outros, mas esses dois merecem, e só posto porque estou absolutamente desinspirada e sã, lúcida e sem-graça, hoje)



Por que me deste o sentimento de um rumo

Se o rumo que busco não busco?

Quando penso que vejo,

Quem continuo vendo,

Enquanto estou pensando?

Não compreendo compreender, nem sei

Se hei de ser, sendo nada, o que serei.

Sonho, sem quase já ser.

Perco, sem nunca ter tido.

É... comecei a morrer

Muito antes de ter vivido.

Por que, enganado,

Julguei ser meu o que era meu?

Minhas inspirações I - Luciano Alabarse, "Aquele Um"

(isso aqui não é meu, não - vide título. É um dos meus ídolos)



Sim, eu sei que é sincero esse teu olhar leviano: me convida, me incentiva, me desmonta, me alucina, me arranha, me abraça, me repele, me reprime, me afasta, me enquadra, me agoniza, e eu, no meio desta brincadeira, neste circo de marimbondos, no limite das minhas forças, EU TE AMO mais do que a tua palavra de afastamento, muito mais do que a lógica irracional do teu panfleto quase literário, muito mais do que a tua fuga sistemática de nós dois, enquanto vejo, pela milionésima vez, que não adianta me enganar, não adianta me iludir, não adianta disfarçar, não adianta querer te tirar da miha cabeça, da minha vida, da minha vista, porque quando te olho vindo, quando te olho rindo, passa tudo que eu não gosto e me vem um gostinho de amor dentro da língua e a minha voz fertilizada sabe que é, porque é, porque és, porque és tu.

29.7.04

Retrato em alta resolução

Não sou de grandes luxos: uma cama gostosa com lençóis cheirosos, um chuveiro muito quente (mesmo no verão), café fresquinho (novo, não frio), sofás aconchegantes, muitos espelhos pela casa, silêncio para dormir, ausência total de baratas e principalmente música. Música, muita, às toneladas, só as que eu gostar por favor, em alto volume. Espaço para dançar.

Sou bom garfo, como tudo menos batata-doce e quase nada de doces. Eu deveria ser gorda porque sou glutona e adoro cozinhar. Tento sempre ganhar peso, sem sucesso. Quando estressada, não como. Se não como muito, emagreço. Preocupação me emagrece também. Sou o inverso das mulheres que conheço -- comigo, o controle é rígido para consumir mais calorias, não menos.
Jeans, sempre. Acho que já nasci de batom. Brinquinho de brilhante (pequeno...), tênis branquinho, de dia uma menina, de noite um mulherão (dependendo da companhia e da ocasião).
Não sou de muito drama (esses, escondo e só mostro na ficção). Acho que todos têm o direito de não gostarem de mim, não corro atrás de ninguém, em geral gosto de todo mundo. Não falo do que mais me preocupa. Não gosto de incomodar. Não gosto de pedir, mas sou generosa. Detesto quem suplica. E quem suplica amor nunca ganha de mim.
Na minha casa há muros. Em mim também, cercando áreas de fragilidade e pântanos, zonas perigosas e locais onde ocorreram crimes de paixão.
Desejaria ser dançarina porque danço bem e qualquer coisa que o corpo faça é prazer para mim. Desejaria ser cantora, crooner cantando baixinho, isolada do público no palco. Canto muitíssimo bem, sirs and ladies, e minha voz é bonitinha.
Não gosto de me mostrar pessoalmente, mas faço isso a todo momento até para superar o pavor. Não sei receber elogios mas adoro dá-los. 
Não acho ninguém feio, não me lembro nunca de que cor são as pessoas, acho que se pode amar homem, mulher ou ambos ao mesmo tempo e respeito as preferências mas sou hetero até agora, deixo abertas todas as possibilidades, me acho bonita pessoalmente, mas horrível em fotos.
Gosto de mim, e das partes que não gosto, esqueço, todos os dias, filtrando Dayse em coador fino, deixando passar apenas a essência melhor, concentrada e mais forte. As partes que sobram, ponho no freezer, esperando nunca usar.
 

28.7.04

Amor Internético

Andávamos assim, medindo amores passados, medindo defeitos comparados, e nossos corações descompassados contra desejos já superados.

Andávamos assim, alternando frustrações, dias de sorrisos e grandes emoções, chuva e sol, sonhos, planos e intensas sensações

Andávamos querendo-nos acima de tudo, tanto que o amor era mudo -- não existiam mais expressões, inexistiam outros casais

Éramos os amantes primordiais, únicos, anormais em nossas intensidades carnais

Andávamos vendo estrelinhas, vendo a vida bela, vendo um futuro brilhante, escrevendo milhões de linhas, sentindo-nos agonizantes, pintando o futuro em nossa tela

Até que a realidade anunciou-se, performática, apontando sua feia cabeça, revirando meu dia-a-dia, despertando-me para o absurdo das paixões informáticas que aparecem em uma tela e nos conduzem à fantasia

Mil quilômetros vos separam - disse-me a razão.

Não vos posso teletransportar - comentou a tecnologia.

Trabalhar é preciso, demitir-se é sandice - falou-me a burocracia.

Corpos não passam por cabos telefônicos - lembrou-me a poesia

E vidas não se vivem em frustração e melancolia - alertou-me a psiquiatria

E assim, medrada a paixão, disse adeus à emoção e fui buscar meu poço preferido, onde enfiar minha cabeça de ser racional, evoluído, lido e por temores consumido e enxerguei o amor apenas como algo banal

Digno somente de mais uma criação, um poema, um conto, uma história, algo perdido em minha memória.

Tristes amores oníricos esquecidos em cérebros tímidos que embora líricos se mostram sempre insípidos... 

Escrever...

Nobre (des)(pre)ocupação...

"O Nada" -- trechinho do meu primeiro original

Alexandre nunca tivera uma depressão. Antes, quando achara que estava deprimido, aquilo era apenas tristeza. Aprendeu o que era depressão aos poucos e, ao vivê-la, teria rido por confundi-la com outra emoção. Só não ria porque estava deprimido. Primeiro, afastou-se de todos, mandou Rob para o inferno quando esta tentou mostrar-se amiga e saber o motivo daquela crise, e se recolheu à sua insignificância na vida daquele para quem queria ser importante. Não conseguia, ainda assim, evitar suas pequenas reuniões com seu chefe. De cabeça baixa, para não lhe ver os olhos nem se humilhar, abreviava tais contatos sempre que podia. Mas ainda chorava e ainda não estava deprimido.

Depois, parou de chorar, não por interferência de alguém, mas por puro cansaço. No lugar das lágrimas, ficaram a apatia, o desinteresse, o descaso consigo e com os outros. Então a depressão instalou-se, como um vírus real, insidioso, lento e cruel, sugando-lhe as energias, o prazer de viver e o próprio corpo, que emagrecia a olhos vistos.

Pouco lhe importava se Luca vinha ou não ao seu quarto ver como estava, apenas parado na porta, sem estender um dedo em sua direção. Achava que fazia isso por obrigação; então, passou a trancar a porta, para que o outro não se desse ao trabalho e pudesse voltar para a mulher, cujo resguardo terminara. Pouco lhe importava comer ou não -- não sabia se sentia fome. Se sofria, não se importava, uma vez que um véu de torpor amortecera as sensações. Agora, fumava e ouvia música em alto volume o dia inteiro, fazendo pouco mais que acessar o e-mail e atender ao telefone, anotando mecanicamente o que lhe diziam, incapaz de selecionar o que valia ou não a pena para Luca, quando este saísse de sua “licença-paternidade”. Se antes agia como empresário, agora era apenas lacaio.

Sua obrigação era simplesmente a de obedecer, não de fazer julgamentos. Atendia aos pedidos do chefe diligentemente, por força do hábito, mas só isso. Parara de pensar. De sentir. De se preocupar. De gostar ou não gostar. Experimentava o nada, agora. De que adiantava ter vontades, desejos, necessidades, se de nada valiam e não importavam para ninguém? Se nem sua mãe o ajudava e, pior, criticava-o perguntando por que, afinal, estava tão abatido, se ganhava bem, se gostava de trabalhar com Luca, se morava numa casa linda, se, se, se...

Seu coração era oco. No lugar do sofrimento, o nada. No lugar da recordação de noites de amor, nem amargura, nem sofrimento. Apenas indiferença. O nada. 


Obrigou-se a sair do nada confortável, por dois motivos.  O primeiro foi a percepção da Verdade, que se foi instalando em sua mente, trabalhando a si mesma, sem grandes esforços de investigação, por trás da agradável neblina emocional. A Verdade mostrou-se aos poucos, enquanto o nada era substituído por amargura, ao recordar as etapas de seu amor louco por aquele homem. Ao repisar todas as ações e reações do maluco que o cativara desde o momento em que pousara seus olhos castanhos nos olhos azuis de seu vizinho de rua, seus pequeninos vislumbres da verdade foram aumentando, crescendo, até transformarem-se em uma grande revelação, que a princípio o pegou de surpresa e o deixou pasmo. Sua mente lógica o obrigou a refazer o trajeto que o levava àquela conclusão, e a Verdade continuou ali, impassível e imperturbável.



26.7.04

Do que não sei

Acordei hoje com dor-de-cabeça, sensação de último dia (sempre parecem ser últimos dias várias vezes no ano), balanço de vida e uma questão no cérebro bilíngüe: What do I Know? Não sei quase nada do que esqueço que não sei, não sei o que te move, não sei ainda aonde quero chegar, não sei se teus flutuares me levam nos ares também, não sei se as palavras te chegam nem sei se ao chegarem te bastam ou se lidas se transformam em polpa, em massa, compactadas com tantas outras e jogadas no lixo seco da cultura inútil.

Acordei sem saber de nada, zerada mais uma vez, querendo entender por que meu corpo não reage como quero e não ajo como gostaria e não me levas contigo e não me proclamas ao mundo. What do I know? Não sei por que eu mesma não me proclamo, por que não me desnudo inteira e me mostro sem medo. Não sei por que brotam de ti zigue-zagues e vai-véns, por que brotam buracos temporais que ao surgirem me deixam no nada, à espera de depois. Sempre depois.

Acordei questionando sem respostas e sem buscá-las, perdida como sempre em mim mesma, sem te encontrar por que, talvez, não me disponha a realmente te buscar. Não sei se entre os sonhos e o agora consigo criar outros hojes que me abasteçam até chegar o dia de perceber que tudo o que projetamos foram apenas possibilidades, conjecturas, vontades e ilusões.

What Do I Know? Não sei quase nada e melhor seria começar a agir como se além de desconhecer, nenhum pedaço de estrada jamais tivesse me levado a destinos apenas parciais no mapa do teu coração.

Acordei perguntando, anoiteço sem respostas, recriando minhas dúvidas e as respondendo em fantasias que escreverei antes de dormir. E as respostas fictícias sempre me satisfazem, mas carecem do teu cheiro, da tua carne e do te ver nos olhos. Mas o que sei?

... Talvez a fantasia seja ainda mais concreta que o tu improvável no meu presente futuro impalpável.


Despossessão

Abro a janela e deixo o sol entrar pelas vidraças fechadas. Meu escritório cheira a Bom-Ar Acqua Marine, a Fox News me chama com notícias sempre desanimadoras mas parece que hoje todos sorriem e eu rio de uma baleia que ficou maluca durante um show em uma piscina. Minha tartaruguinha parece compartilhar esse estado de ânimo mais leve que me capturou hoje, fazendo cambalhotas e saindo da hibernação. Eu também – não dou cambalhotas, mas pareço saída de um longo inverno.

O tempo nos engana hoje, fingindo-se de primavera e eu me engano, mais leve e com humores floridos hoje. Deixo as lágrimas de ontem secando ao sol, descongelo meus ossos, estendo os tapetes de meus devaneios na rua e me junto aos gatos livres sobre os muros (ainda que apenas em intenção).  

Hoje abro todas as portas e as prendo com sacos de areia para que O Bem possa entrar, assim como abro a porta do coração que andava batendo, instável e hesitante, maltratada por ventos incertos em suas dobradiças.O que quer que andasse habitando os cantinhos da minha alma e lhe tirando a luz parece ter saído a passeio e deixado o ar, o sol e a vida penetrarem hoje entre minhas células, através de minhas pupilas, nas comissuras do cérebro e nas frestas do coração.


25.7.04


Sonhei que Sabia Voar...

My spirit has flown away...

Hoje são eles que me dizem o que quero te dizer:

 

I never fell in love so easily

Where the four winds blow I carry on

I'd like to take you where my spirit flies

Through the empty skys we go alone

Never before having flown

Faster than lightning is this heart of mine

In the face of time I carry on

I'd like to take you where my rainbow ends

Be my lover friend, we go alone

Never before having flown

I am your hurricane

Your fire in the sun

How long must I live in the air?

You are my paradise

My angel on the run

How long must I wait?

It's the dawn of the feeling

That starts from the moment you're there...

You'll never know what you have done for me

You broke up all those rules I live upon

And I'd like to take you to my shangrila

Neither here nor far away from home

Never before having flown

I am your hurricane

Your fire in the sun

How long must I live in the air?

You are my paradise

My angel on the run

How long must I wait?

It's the dawn of the feeling

That starts from the moment you're there...

 

(Bee Gees)

 



Mais uma lavagem de alma

Ele começa me contando sobre uma tatuagem escondida e termino lhe falando que também me sinto escondida em sua vida.

Nunca tive romances secretos -- ao contrário, tudo é tão escancarado em mim que enfrento mais ou menos uma guerra por dia com aqueles que entram pela porta aberta, vêem minhas histórias e se sentem atingidos por bombas que lancei e nem percebi.

Nunca mantive casos escondidos, nada sórdido nem duplo -- tudo sempre às claras, limpo como meus sentimentos que declaro mesmo quando não são tão puros.

Ele tem sido sempre o mais nobre dos amores sinceros. Ele, que ouve tudo de mim, reserva-se o direito de manter-me ao lado, paralela à sua vida, bloqueada para seu amigos e servindo como um grande ponto de interrogação àqueles que nos suspeitam íntimos.

... Como se intimidade houvesse sem contato corporal...

(Mesmo assim, sou mais íntima dele que de mim mesma, às vezes).

Ele, que num dia frio de um mês de dois mil quase me causou um ataque cardíaco (meu modelo de sucesso pessoal, ligando do outro lado das Américas, porque gostara das minhas histórias?). Ele, que me exigiu grandes esforços de concentração para parar de rir de alegria, sempre que ouvia sua voz... Este mesmo com quem tenho um trato ("Quero um dono, não sei não ser de ninguém" -- "Achou").

Talvez isso faça parte de seu mistério, de sua aura de charme, de sua neutralidade diplomática, daquilo insuspeitado quando lhe ouvem a voz sonora nos canais de tevê...

Diz ele que não me faz segredo. Que não tenho razão, quando lhe digo que me sinto como o pano de chão escondido atrás da porta.

E o testo, assim, aqui, porque nenhuma prova em contrário me convence de ser querida quando não me permitem que conte quem me quer tanto assim. E meus olhos ardem, nem sei por que, mesmo assim, apenas por ouvi-lo dizer que minhas conclusões o perturbam. Se o perturbo em algo, por que não me contentar com isso -- que já é mais do que causo a muita gente?

... Por que não sei não ser de ninguém, e quando a posse é negada, de nada vale o contrato verbal...

 

 



 



23.7.04

Você tá bem?

Ele me pergunta como foi meu dia e eu me vejo muda porque não sei como lhe responder.

Ele quer saber se estou bem.

Como se fosse fácil contar-lhe que meu dia se faz por dentro, não por fora.

Se fosse responder, lhe diria: "Hoje, declarei uma paixão, defendi uma amiga, lavei a alma duas vezes, senti pesar por outra amiga, identifiquei-me com K. (como sempre), pensei em responder a um e-mail mas achei que só me repetiria, ouvi meu amigo I. dizendo-me que sou sua ídola-madrinha-dos-gays, quase fui até outro estado estrangular a namorada de alguém porque *ela* também escreve tão bem que posso virar sua fã...

Mas nada disso é o que ele deseja saber.
Então: sim, as finanças estão sob controle, já posso sorrir um pouquinho. Sim, tenho trabalhado. Sim, dei gargalhadas com a pequena, quando cantei "Mochila, pantufa, uniforme, calcinha" e ela exclamou: "Mãe! Como é que alguém vai à escola de pantufa? É *caderno*, não pantufa!", mas depois começamos a improvisar na letra da musiquinha do comercial e rimos como loucas. Sim, levei-a à psicóloga, que suspeita que minha pequena não tem TDAH, mas excesso de inteligência. Ah, claro, contei-lhe que a Letícia já se submeteu a avaliação e que, sim, é superdotada e que sim, também sou mas e daí se neste país superdotados têm tão poucos privilégios quanto os desprivilegiados cerebrais?
Então, como a vida (minha) se mede por dentro, e ele é um homem que mede a sua pelo que vem de fora (ou pelo menos não me transmite vôos, mas sempre põe meu pé no chão), em certos dias, quando voei demais, não ouso lhe dizer por onde andei, porque quase posso ouvir um suspiro resignado vindo de lá, como que dizendo: "O que faço contigo, hein?"
Nada. Let me be.
Sei que entendes que às vezes só preciso buscar outras almas que alimentem a minha.
Quando eu voltar para a terra, te procuro...
 

21.7.04

Querido E.

Querido E.: 

Obrigada por não me amares. Não que algum dia tenhamos falado sobre amor recíproco – sei que jamais pensaste nisso. Te agradeço porque sei que não te apaixonarias por mim, enquanto eu sei da possibilidade (da certeza) de vir a te amar, se já não me pusesse fora do jogo desde o primeiro instante em que meus olhos bateram em ti.

Tuas palavras são borboletinhas que passam por mim e me encantam, voejam à minha volta e fico a pensar aonde vão, o que pretendem, porque existem. Fico a pensar no homem que as escreve e, sinceramente, as chances de eu me deixar voar com tuas letras-borboletas são grandes.

Te agradeço por nem me responderes, nem me corresponderes. Não tenho nada contra permanecer neste estado de embriaguez completa com tua presença no mundo, desde que não me atires um fio sequer de esperança. Assim, unilateralmente, sou mais livre para sonhar que és aquele. Aquele um. Aquele que minhas fantasias completam e tornam perfeito.

Obrigada porque, sem a materialização da pessoa, te criei parcialmente com o pouco que tinha e tens servido como inspiração e tudo o mais que acaba em “ão” e que é bom...

Se me amasses como eu poderia vir a te amar, temporais inusitados cairiam sobre meus dias, me encharcariam de tanta emoção que eu, provavelmente, morreria afogada em minha própria doçura. Se me amasses, eu provavelmente morreria de fome, alimentando-me apenas da espera por ti. Se me amasses, eu perderia o sono, me consumindo em criações mirabolantes para te prender para sempre. Se me quisesses como eu quero a ti, o mundo se transformaria em um lugar enojantemente belo. Como sabemos que tal beleza seria delírio, te agradeço por manteres minha sanidade.

Querido E., obrigada por simplesmente estares aí, quando estou aqui. Não é preciso mais que isso para eu ser feliz. Continue não me amando, enquanto eu continuo aqui esperando que minha esperança de não te amar se concretize.


Números

Quando eu estudava, odiava matemática. Sempre ali, em meio a tantas notas lindas em inglês, português e história, havia aquela vergonha a me torturar. Fracasso total, aberração da natureza, um cérebro tão bonzinho para tudo e retardado para números.

Agora, muitos e muitos anos depois, quando não preciso mais deles para sobreviver, números me encantam. Aprendi que números são música. Explicam tudo. São sonoros, verdadeiras poesias em fórmulas bem feitas.

Estão por toda parte – na cadência das gotas de chuva, na duração de uma melodia, na marcação de uma legenda de filme, na duração da minha vida, nos suspiros de um amante, em contrações rítmicas de um corpo feminino, na barriga da mãe horas antes do parto, nos ciclos da lua e no meu coração. Na medição do xarope da pequena, no termômetro que preocupa, nas páginas dos meus escritos (que a cada revisão encolhem), nos fios de cabelo branco, nos brotos novos da plantinha à minha frente.

Por que não nos ensinam que números têm poesia, na escola?

O que significam aquelas coisas estéreis, junto com “X”, “Y”, e nomes de gregos que não dizem nada a quem os estuda?

Será que não existem professores de matemática com algum lirismo?

Foi preciso que poetas, esotéricos e minhas numerosas dores me ensinassem aquilo que os mestres deixam de lado, quando os tratam como algo apartado do lado mais doce da existência. Ninguém explica, na escola, que nada pode existir, sem a beleza da matemática.

Algarismos, cômputos e balanços ainda são meu calcanhar de Aquiles, mas têm me ajuddo muito a compreender desde as rasteiras que levo de colegas sem escrúpulos até minhas crises hormonais. Hoje, sei que a vida se rege por números. O corpo obedece a eles. Hoje, sei que o universo canta por números – considero-os a própria linguagem de Deus.E os respeito como a uma prece.

19.7.04

Crônicas Passadas I

(Escrevi isso pertinho do Natal do ano passado -- revela muito de mim, mas e daí?)

 



Respondendo a Lennon

"And so this is Christmas... And what have you done?"

Aiaiai. John Lennon volta todos os anos, indagando isso. E eu nem gostava do cara e era mais fã do Harrison e do Paul. Mas pela primeira vez, ouso responder.

Neste ano, tentei ser gente -- nem sempre consegui, me enfurecendo com fura-filas, com caixas de banco arrastados, com mães desleixadas, com promessas não cumpridas, com homens e mulheres bem intencionados mas frágeis e que, como eu, por instantes esqueceram-se de ser humanos.

Em outros momentos, fui tão gente que me humilhei, apresentando lamúrias e lágrimas candentes a quem não queria ouvir minha voz chorosa ou ver meus olhos em brasa. Nesses momentos me senti como Fernando Pessoa, ao reclamar que todos pareciam ter sucesso, menos ele. Só ele não ganhava rios de dinheiro, só ele não tinha um amor, só ele era cheio de defeitos. Senti-me assim, meio boneca de pano, meio espantalho, meio pano de chão e meio cascalho.

"And so this is Chistmas... And what have YOU done?"

Agora, a voz cantante parece perguntar diretamente a mim.

Nada de mais. Falo sério. Não fiz nada de mais. Meus sonhos atingiram o zênite em março, caíram como ônibus espacial em junho, em julho fiquei a ver navios, em setembro quase morri de desgosto (não em agosto), em outubro achei que não sobreviveria, em novembro descobri que, tal qual Tyler Durden do Chuck Palahniuk, só se é capaz de tudo quando se perde tudo (ou nem foi ele quem disse isso, originalmente? Não importa, ficou bem na boca do Brad Pitt)... Em dezembro voltei a viver, e agora sou adulta para sempre. Pelo menos, espero que sim, desta vez.

Não fiz nada de mais. Não fiquei famosa (não queria isso, mas me "prometeram"). Não decolei -- ao contrário, atolei. Não paguei contas suficientes, não amei o bastante, não cumpri meu destino autoprojetado (caramba, se destino autoprojetado houvesse...) de ser alguém. Não fiz as pazes com pessoas que nem sei por que sumiram, e não fiz porque não quis. Neste ano, banquei a durona -- e por causa disso, de vez em quando me desmancho de saudade, mas quando acordo no outro dia, viro pedra novamente.

"And so this is Christmas... And what...?"



Ah, cala a boca...

Sei que não fiz o bastante, mas minha falta de ação não significa que não vivi. Entre as bocas que não beijei ficaram os sonhos. Das saudades que senti vieram as poesias. Do tempo ocioso à espera que meu barquinho visse novos ventos, restaram prêmios de uma garotinha linda de oito anos que em um ano só ganhou três diplomas na escola -- de melhor desenho, de participação como Branca de Neve na peça da escola e como Representante da Turma Ecológica da Segunda Série. Ficou a líder pequenina com suas vitórias, enquanto a líder da casa esperava melhores dias. E a vitória da pequena mulher foi o prazer da grande.

Sem querer roubar nada dos Titãs, o acaso me protegeu, enquanto eu andava distraída...

Minha falta de ação me deixou receptiva para todo mundo que quisesse se aproximar, já que agora havia tempo. E vieram pessoas lindas. Amigas que me abraçaram pessoalmente e por palavras. Amigos que se doaram a mim como nenhum pai, nenhum irmão ou namorado poderia fazer. Princípes Encantados e Lordes, Rainhas Boas e Fadinhas, Anjos da Guarda -- literalmente, anjos. Um exército de pessoas de coração generoso, marchando sobre minha descrença, ressuscitando minha fé, me pegando em seu colo, sentindo carinho e achando linda minha cara de choro, ou me dizendo, num olhar cheio de brilho, que eu era importante *sim*. Pra eles.

Então, o que fiz foi tentar ser gente e, no fim, acho que tive sucesso. Entendi que sucesso, afinal de contas, é simplesmente ser gostado por aqueles que nos importam. E nisso fui campeã. Provei a mim mesma que não preciso ser supermulher, nem super-coisa-nenhuma, e mesmo ainda tendo vergonha de ser fraca, me perdôo se nem sempre dei gargalhadas, nem sempre beijei o inimigo, nem sempre dei a outra face, nem sempre fui nobre, nem sempre fui excelente em tudo o que fazia, nem sempre pude fazer o tempo parar e pedir um tempo para sentar-me à beira do caminho. A vida não parou, o ano de Snoopy que vivi chegou ao fim com uma nota alta tinindo em meus ouvidos em vez dos tons de réquiem... E sobrevivemos, todos (ou quase todos).

No fim das contas, vivi mais que em muitos anos, uma vez que paguei por viver o que prego: que a vida se mede por emoções e que só tem sentido quando se está crescendo. E aí, cantei pra mim mesma, junto com o Van Halen: "Go ahead and JUMP!". Saltei de cara pra vida, e me dei bem.

Uma dívida maior que as outras ainda preciso saldar em 2004: retribuir o amor que recebi -- das pessoas, de Deus, dos anjos de lá e dos anjos de cá. Mas isso, em suaves prestações, porque não posso sacar de um só coração, em apenas um ano, o que recebi de tantos...

 E se pareço melancólica, não estou não. É só a praga do Lennon que como na história do Avarento, sempre volta pra me assombrar, como o Espírito dos Natais Passados. 


23/12/2003.



18.7.04

Respeito?

Sonho em dançar pra ti. Sonho em entrar em um sonho teu para que me vejas quando sou aquela que sou quando me esqueço de fazer de conta que sou aquela que não sou. Eu na meia-luz, Enigma como cúmplice, Principles of Lust rodando suspirante e ofegante, sem saberes o que é minha voz, o que é a canção, o que é minha mão, o que é tua própria sensação nos arrepios que te inquietam. Bem filme de quinta, bem filme brega, sonho em te provocar, tirar o sutiã meia-taça, deixar que bebas dele, te ver afrouxar gravata, sentir tua face quente, teus lábios abertos e teus dentes na minha carne. Teus olhos brilhando no escuro, transformado em minha massa de modelar, minha argila, minha matéria pura, meu papel amassado, meu homem esgotado. Sonho em te maltratar, te surpreender, te deixar me entrever como amante esquecendo-te da minha suposta inteligência que elogias. Não quero elogios. De ti, quero voz baixa me dizendo coisas que não se diz a uma intelectual, te quero sem tanta finura, sem tanta frescura como a que me dedicas ao me veres como igual. Não sou igual. Sou mulher – apesar de dizeres que já notaste, não sei não. Não deverias ser tão gentil, com esta que teoricamente é tua maior paixão... Sonho em te mostrar que, nem tão escondida assim, quase à flor da pele e deixando transparecer tal existência mesmo nas conversas mais sérias, aqui está uma private dancer que amaria esquecer-se dos livros, largar os óculos no chão, pisar neles com meus saltos agulha, talvez, te estrangular com a gravata enquanto te mordo a boca e te atropelar com meu desejo. Sonho em tirar minha capa de boazinha e meiga para que me vejas nua e malvada, como mereces e esqueces de pedir. E eu esqueço de oferecer, sempre tão disfarçados, nós dois, de bem-educados, delicados e estudados. Nunca mais me insultarias elogiando minha mente. Não quero ser inteligente. Quero ser macaquinha correndo de ti, animal, irracional e totalmente carnal (nada mais de romance ideal, idílico e teórico...). Quero a prática do amor. Quero te provar que minhas mãos não apenas digitam, mas também liberam pequenos terremotos, quando me esqueço de ser quem não sou. Que minha mente não apenas fantasia, mas apaga o dia, fecha as janelas do banal e pode te lançar em uma outra dimensãozinha temporária, deliciosamente terrível, da qual nem desejarás fugir e voltar pro teu mundinho real. Quanto a mim, ficaria feliz se ao menos um dia pudesse dançar para ti e descer aquém daquilo que sou quando me vês, cair do pedestal, me partir em mil pedacinhos carregados de paixão e nunca mais recuperar meus neurônios em frangalhos. Quando teu peito parasse de subir e descer, eu me banharia no teu suor, engoliria aquele teu último gemido, e diria adeus ao teu respeito por mim.

Oh, Wilde, não te disseram

Que amar demais te mataria no fim?

(Eu diria que te invejo,


por teres amado assim)

17.7.04

Menina-Poema

Letícia

Menina, rima

Poesia concreta,

Versos sempre incompletos.

Minha criança, única herança

De minha humanidade

Sementinha da minha bondade

Adubada com mancheias de carinho

Aguada com choro, saudade antecipada

Por sua infância, por cada dia que acaba

E já não é seu, mas pertence ao passado.

Letícia, gestos amplos, coração de ouro

Mocinha, mulherzinha atrevida e sincera

Produção perfeita de quem te sonhava

Quando ainda não te esperava.

Meu sonho mais real

De ser imortal.

15.7.04

"Fotofobia"

Tenho esse pavor a fotos minhas...

Seja por misticismo (se fotos revelam a alma, a minha anda feia), seja por estética (ângulos agudos num rosto magro nunca ficam bem), por questões metafísicas (não, não quero me ver na foto e saber que estou quase a morrer) ou por questões freudianas, tenho essa fobia a me ver em fotografias.

Meu pai me olha do espelho, quando me olho no espelho. Meu pai está na minha cara e minha cara é a sua, mas sua cara leucêmica, traumática, pálida e esquálida nunca poderia ser a minha. Ainda assim, olho para meu pai quando olho para mim e ele me olha quando meus olhos me vêem.

Isso não era assim. Meus ângulos e contornos nem sempre me assustavam. Antes.

Eu o fotografei num Dia dos Pais, sabendo -- após tantos meses sem vê-lo -- que deveria bater aquela foto, porque seria sua última.

Fotografei-o comigo.

Eis-me ali, ao seu lado, num agosto -- eu sabendo que ele se ia, sem que jamais tivesse passado por nossas cabeças que ele adoecia havia anos --, consciente naquele momento de que nunca mais o veria numa foto. Meus olhos naquela foto me dizem, hoje, que o traí, que deveria ter-lhe dado uma pista. Algo. Uma palavra que o fizesse perceber que a foto já era póstuma, mesmo enquanto ele ainda estava ali. Porque já não estava mais. Praticamente.

Ainda tentei convencê-lo a ir ao médico. Ainda disse que o acompanharia. Mas não insisti muito, porque não adiantaria, e eu sabia.

Internou-se em fevereiro. Morreu no começo de março, comigo ao seu lado. Sua mão, no último instante, apontou para o céu através da janela e lá ficou seu braço esticado, apontando, apontando -- seus olhos espantados viam algo que a mim escapava.

Depois disso, eu que o amava não me suporto mais em fotografias. Sempre o vejo ali, a me indagar: "Se sabias, por que não me disseste?!".

Eu sabia, mas não podia lhe dizer. Nem saberia como, apesar de saber por que sabia. Se lhe dissesse, ele jamais aceitaria, nada evitaria seu fim e, de qualquer modo, nunca esteve pronto, desacreditando em tudo, enquanto estava aqui.

Seus olhos me questionam hoje, ainda. E seu rosto me atormenta, quando o vejo em mim.

Ainda amo espelhos. Ainda me amo. Meu reflexo em movimento se disfarça de mim, mas não me deixo enganar. Ele está ali. E ali vai ficar -- talvez para me lembrar que eu também, um dia, vou me olhar e saber que esta será a última foto.





13.7.04

Espeto Corrido

Todos os dias, ao passar, via aquilo pintado em letras vermelhas na fachada branca: “Espeto Corrido”.

Sempre achei engraçado o nome que dão ao churrasco que vai de mesa em mesa, um tipo de carne de cada vez. Era sempre tão corrido mesmo que poucas vezes consegui comer mais de um tipo de carne a tempo de pegar o seguinte, que já passava apressado.

Embora não quisesse olhar, sempre acabava com os olhos voltados naquela direção, topando com o letreiro de “Espeto Corrido”.

Um dia, esperando encontrar o mesmo de sempre na fachada, de repente meu olhar deparou-se com o conhecido “Espeto Corrido” e com uma seta que apontava para outros dizeres, ao seu lado: “Agora com Nova Direção”.

Ninguém entendeu minha risada dentro do coletivo.

Cria, Criatura!

... Então esse personagem vem e me diz: “Me conta”. E seu “me conta” não significa que deseja saber algo que eu sei – significa, isso sim, que ele exige ser contado.

De vez em quando, simplesmente reaparece em minha mente, mesmo quando penso que já o contei por completo em mais páginas do que qualquer editor aceitaria. Ele sempre acha que esqueci algum detalhe e, fascinante como sempre foi, me enfeitiça e me faz tocá-lo novamente. Conheço-o por dentro e por fora, seus gemidos, seus gozos, suas manias e fraquezas, e ele não aceita ficar impassível. Adora ser manipulado.

Quando penso que já não suporto vivê-lo mais, que nunca mais tocarei no Luca, ele me conquista novamente, me faz revisitá-lo, sempre exigindo atenção.

Vivi tudo o que podia viver com ele, em mais de um ano transportando sua vida para a tela do computador, chorando de pesar com seu sofrimento, vibrando com suas emoções, mas ele parece inextingüível, mesmo depois de morto. Virou assombração e, volta e meia, uma canção me lembra seus olhos, a cara do dia me leva a seus estados de ânimo, uma dança o ressuscita.

Quase o vejo na rua – e não só eu, mas alguns que o leram também o viram, algumas vezes. Na última vez, estava de costas no estacionamento de um supermercado. Quase o chamei, mas temi passar por louca...

Hoje mesmo atacou-me no meio da tarde com seu “Me conta!” exigente. Então, de repente, o dia não era mais essa coisa insossa. Era outra vez setembro e Luca transbordava de paixão, por seu amigo, por sua mulher, pela vida. Meu dia de repente ganhou aroma, cor, sabor, emoção.

Luca não sabe quando é hora de parar. Não tem limites. Se não lhe ponho um freio, toma conta de mim para sempre.

Já apaixonou três editores que não largavam dele mas também não o liberavam para que outros olhos o conhecessem – logo ele, que adora se mostrar. Já me deu dissabores, me trouxe amigos e causou uma briga fenomenal com um revisor ciumento que o queria tanto para si que queria também inventá-lo. Nein. Luca sempre foi meu.

Em algumas noites, escuto sua voz sussurrando no meu ouvido, dizendo-me para ter calma, que tudo se ajeitará. Que quando for o momento, ele se mostrará para o mundo e sairá do meu domínio. Mas que mesmo assim, sempre será meu, sempre estará lá, para que eu o recrie, conte seu antes e seu depois, mova seus amores e ponha o caos em sua vida. Assim como ele na minha.

Fora dessas linhas no computador, não falo em Luca. Ninguém entenderia esta obsessão que não é minha por ele, mas dele por mim.

... Um dia chegarei à conclusão de que meu Luca não foi criado – me criou para si, apenas porque seu narcisismo precisava de uma idiota romântica qualquer que servisse a seu propósito de se revelar.

Um dia eu o abandono. Juro. Quando o tirarem de mim, será dos outros para sempre.

E se disserem que amo só a ele, tenho testemunhos de que não lhe sou fiel. Nem sempre, pelo menos.

Infeliz de quem não tem um personagem por quem se apaixonar.

(É uma diversão sem fim, ter um alter-ego assim)

12.7.04

Nada a dizer...

Hoje, não tenho nada a dizer.

Há dias em que a alma se prende ao chão, incapaz de se soltar da matéria e iniciar vôos além da carne.

Hoje, o espírito está mudo.

Hoje impera a rotina. O objetivo. O prático. O aborrecido fazer-pagar-comer-dormir.

Por falta de motivação, o departamento criativo deste corpo de tantos ânimos simultâneos está fechado indefinidamente. Nada o seduz. Nada transforma os olhos baixos e sem luz, nada acende o brilho curioso, malicioso, apaixonado.

Enquanto isso, fico eu aqui, entediada comigo mesma, irritada com tão reles existir, mesmo que por algumas horas apenas. Não me suporto comum.

Hoje, é a banalidade do respirar. Amanhã, talvez, a poesia retorne e este mesmo simples ato de respirar já me pareça glorioso.

Por enquanto, me arrasto.

11.7.04

5:56

Guia minha mão.

Conquista

Conduz

Contorna

Contém

Modula-me

Ondula-me sobre ti

Ajeita-me

Aceita-me

Apalpa-me

Abafa minha voz

Afina-me

Com tua boca em mim.

Corrige meu tempo

Cadência e compasso.

Compõe-me como canção.

Canta-me.

Cala-me.


Sisifo Posted by Hello

Notícias de Marte

14:00 -- A essas alturas, os terráqueos já devem ter percebido o que fizemos. Hoje terão de providenciar algo para passar o tempo, depois que abduzimos o www.orkut.com para estudarmos seus hábitos quando não têm nada mais útil para fazer. Prometemos devolver o site, assim que certas condições forem cumpridas.

1. Se ao fim do dia os terráqueos tiverem dedicado pelo menos quinze minutos do tempo que permaneciam conectados no dito site a conversas com seus familiares e amigos.

2. Se ao fim do dia, os adolescentes tiverem dedicado pelo menos uma hora do tempo que permaneciam conectados ao site ao estudo da gramática e ortografia da língua materna.

3. Se ao fim do dia, tiverem ligado para pelo menos um de seus avós esquecidos.

4. Se ao fim do dia, pelo menos metade dos freqüentadores do dito site puderem dizer que tiveram a sessão de sexo mais satisfatória de sua vida.

5. Se ao fim do dia, homens e mulheres empenhados em aumentar seu número de amigos virtuais tiverem falado com pelo menos dez seres humanos reais.

6. Se ao fim do dia tiverem dedicado pelo menos um décimo do tempo que dedicavam ao site para lerem algo útil.

7. Se ao fim do dia jurarem que não deixarão mais pai, mãe, irmãos, filhos, avós, humanidade inteira, problemas e trabalho esperando, com a desculpa apressada, sem tirar os olhos da tela do micro: "só mais um minutinho aí que preciso dar uma olhadinha neste perfil...".

Como é fato sabido e comprovado que os humanos são preguiçosos e esperam sempre uma solução caída dos céus, sem esforço próprio, provavelmente as condições acima se cumprirão automaticamente a partir de amanhã, já que no fim do dia tudo continuará como antes e encontrarão, sempre, outro site que lhes roube inutilmente o tempo de vida.

Fizemos nossa parte. Esperemos que um dia façam a deles, em prol do Universo.

10.7.04

Lá, de novo, Agora

Estive lá hoje. Mesmo lugar, outro momento, outras pessoas, outro clima, diferente estado de espírito, mesma decoração, outra emoção. Lá, quando chovia tanto e era quase hoje, mas num outro ano. Lá, quando depois não voltei para cá, quando fiquei num outro lá. Contigo. Estive lá e outra vez não escutei a música que tocava ao fundo porque nunca gostei dela e nem gostei de ti quando te conheci morto de frio todo encolhido ali no meu lado falando de músicas que não escuto, de coisas que não leio, de gente que não conheço e de coisas que não fiz. Mesmo assim estavas lá e eu não totalmente, mas mesmo em parte, contigo. Estive lá mas cá tudo mudou e tu mudaste e mudamos nosso modo de ver o aqui. O agora não é mais junto e o junto não é mais como lá. Mesmo assim, o lá me recordou que houve um antes e um antes que poderia ter sido depois. Mas não foi. Contigo.

9.7.04

Parado aí, "inho"!

– Cadê minha boquinha? Cadê meus dedinhos? Cadê meu pescocinho? Cadê meu beijinho? – Pergunta ele, fazendo beicinho.

– Cadê teu cerebrozinho? – Indago eu, pronta a mandá-lo para um hospiciozinho.

Um amigo me chamava de florzinha. Eu lhe disse que era. Planta carnívora. Devorei-o.

Um namorado era calado, menos quando apelava para os denguinhos. Por pouco não entrei em coma, por falta de excitação neuronal.

Dêem-me o que pensar, e me apaixono...

Tratem-me como tola e lhes mostro um espelho. Se virem a si mesmos apelando para “inhos” e “nhém-nhém-nhénzinhos”, nunca mais repetem a dose. De diminutivo já basto eu, magra e com voz fininha. Mas prefiro ser mulher, não “xuxuqinha”. Se um dia eu chamar um homem de “cutcho-cutcho” ou “fofucho”, internem-me. Homem é homem.

Ponto.

Hino da ninfomaníaca: “I can’t get no satisfaction, but I try, and I try, and I try, and I try”…

Letícia aos três anos

Um bigo, dois bigos, três bigos.

Uma gala, uma galinha, uma galona

Fara, farinha, farão

Arranho, arranhão

O vido, os vidos

(se dissessem “ouvido”, perguntava: ou vido ou o quê?)

8.7.04

O tédio

É um Bolero de Ravel

Desenrolando-se no fundo do dia

Interminável, sonolento, pasmacento, enjoado.

Um suicídio agora

Seria até perdoável.

Morreu de sem-gracice

De falta de excitação

De ausência de tesão

Matou-se ouvindo Coldplay

Em doses cavalares.

Tomou Yellow na veia

Cerrou os maxilares

E esperou sufocar.

7.7.04

"Reel Around the Fountain"*

Quinze minutos contigo…

Eu não diria não”...



Sonhei contigo novamente.

Tu falavas de Sartre e eu só queria existir, sem pensar na existência além daqueles quinze minutos na escuridão do pátio. Borbulhantes sons do chafariz com querubim no meio fazendo pipi faziam fundo à tua voz efervescente.

Tu falavas de vida, e eu imaginava uma morte, um desejo máximo a me tirar do mundo.

Dizias de tuas pretensões literárias, de teus planos, com lábios rápidos de entusiasmo e só o que eu fazia era imaginar essa mesma boca com sua tagarelice sem som ao sul do meu corpo.

Estavas de novo naquele pátio. E depois, estavas no bar minúsculo, bebendo vinho, tremendo de frio, enrolado no teu cachecol, romântico como um herói.

E eu de novo te ouvindo, pensando que sempre serias belo, sempre jovem e ardente.

Sonhei que ainda me contavas. Que ainda me amavas. Platonicamente. Inconscientemente. Puramente. Eternamente.

Em meus sonhos, estou sempre junto àquela fonte, sentada na escuridão contigo e finalmente me dizes as únicas palavras que aparentemente esqueceste de dizer, no teu amplo repertório de assuntos, temas, delírios e criações: “Take me to the heaven of your bed”...

Deixaste-me na fonte. Sozinha no pátio. E nos meus sonhos sempre é inverno. E sempre estás por chegar, ainda com teu rosto de herói, mudando meus desejos, mas não o mundo.



* The Smiths
Na amoreira podada de galhos pelados, sapatos recém-lavados, pendurados.

Fotografo.

Talvez nunca mais possa ver um verdadeiro pé de sapato...

Vazios

Conheço pessoas com buracos no peito

Não são tiros, não são balas

São palavras de amor que saíram

Do fundo do coração,

Esquecidas por quem recebeu,

Jamais devolvidas, nunca retribuídas



Conheço gente com buracos na alma,

Cavados por sofrimento,

Erosão feita por

Chuvas de ingratidão

Vagarosa corrosão,

Lenta degradação.



Conheço seres com buracos na vida

Dias sem sentido

A imensidão do vazio

A perda de filhos

O nada no futuro

Onde eles estariam

6.7.04

...sempre cabe o etéreo e o infinito, num minuto da mais pura rotina. O que o quotidiano contém, a alma libera.

Um Não Agora

Vejo-me e me nego em ti. Te reconheço, não te conheço, me desconheço ao te perceber. Decerto, brotava há muito a vontade de me encontrar -- me perder -- que aflora ao te ler. Minha mente excitada te descobre e me isola em mim mesma, atarantada, por tua beleza infinita. Quem dera eu ser bonita, quem dera eu ser de novo, quem dera não me ver mais e me perder no que és. Porque és. E és tu sempre, enquanto eu não sou mais quem me faria te achar.