26.8.04

SUPERLETÍCIA



Letícia Batista Carvalho, meu quebra-cabeças favorito, finalmente juntou hoje seu último pedacinho e o quadro final gerou uma imagem incrível, de uma menina de 8 anos e 10 meses, linda e alegre, com um Q.I. brilhante, ofuscante, de 165.

Segundo a psicóloga, minha filha tem hiperatividade por excesso de atividade mental e inteligência.

Segundo a Letícia, seu Q.I. resulta, pura e simplesmente de um "modelo melhorado da mamãe, última geração".

Como eu só me tornei uma palhaça depois de adulta, sempre achei que superdotados fossem pessoas aborrecidas e sisudas.

Que nada. Minha filha é a maior comediante do planeta, pessoínha feliz e explosiva em sua energia.

Desculpem a babação, mas para quem luta há pelo menos 4 anos para descobrir o que torna minha filha tão diferente das demais, a revelação (com conseqüências boas para sua educação e para o modo como a escola precisará lidar com ela) é SUPERSUPERSUPERSUPER.

Eu vi a Luz (Birds Do It II)



... Madrugadas insones servem para ganharmos insights. Minha única dúvida é se insight de gente sonada serve para algo ou é como discurso de bêbado, aparentemente genial, mas oco.

Descobri que

1. Não sou passarinho (o que já é algo para mim que me confundo com tanta coisa), de modo que não preciso andar de galho em galho dando atenção ao canto de qualquer macho.

2. Não tenho problema nenhum por não sair amando alucinadamente a cada semestre, ano ou triênio, que seja.


3. Não vejo problema, também, em me apaixonar profundamente -- e temporariamente -- como um laboratório de provas para saber quando será AMOR, não amor.

4. E não tenho problema porque, provavelmente, sou uma dessas mulheres que acha que amor de verdade só acontece uma ou, no máximo duas vezes na vida.

A Verdade é um paredão tão gigantesco que quando se está parado bem de frente e quase enterrado em sua base a gente nem o nota. Fica parecendo que aquele muro é tudo o que existe, é nosso horizonte máximo e está lá porque está, apenas, quando é nossa explicação completa e pode ser escalado e visto finalmente, se ousamos recuar ou ultrapassá-lo para vê-lo de outra perspectiva.

Ah, se vocês soubessem o quanto me senti aliviada ao perceber que sou apenas **mais** romântica que o normal, não menos.

Que venham as paixões, então, enquanto espero o Mr. Right (ou Mr. Wrong, que parecerá certinho pra mim).

Ufa.



Birds Do It (em homenagem ao Iuri)



Birds do it... let's fall in love

Cole Porter



Sozinha no meio do mato (eu, bicho menos sábio que aqueles à minha volta), hoje pela manhã, sentada num pedaço de tronco, em completo silêncio, observei os passarinhos, que mal percebiam minha presença -- ilusão minha, é claro. Pecebem tudo, mas também perceberam minha inveja e se puseram a exibir-se para mim.

Passarinhos azuis, aos pares, voavam de um para outro eucalipto. Cocotas (como se chama isso no centro do país, meu Deus?), aos bandos aqui onde moro, tagarelavam -- aos pares. Bem-te-vis vinham buscar minhocas no chão -- aos pares.

Parece que, nos últimos dias, uma onda de amor toma conta do mundo -- pelo menos, nos últimos dias é que comecei a perceber essa mania de andar em dupla -- homem-mulher, homem-homem, mulher-mulher, passarinho-passarinha, não importa.

Recebo notícias de que um amigo virtual recente enamorou-se por um urso e, incrivelmente, está feliz. Senti-me invejosa, feliz por ele, mas invejosa.

Uma certa K. anda entusiasmada, mudando até o tom de seus posts. Vibra novamente. Deve ser paixão.

Às quartas-feiras, a pequena audiência deste meu bloguinho cai drasticamente -- estão todos namorando, até meu fiel 201.3.147.#, que não conheço, mas nunca me falha...

Eu, embasbacada, mesmerizada, hipnotizada e atoleimada, olho para tudo isso boquiaberta, sentindo-me a legítima Emília em busca de seu Visconde de Sabugosa.

Vontade não me falta, de estar apaixonada e namorar. Não me sinto mal, mas também não me sinto bem, por não amar e não andar aconchegando ninguém ultimamente.

(Para falar a verdade, nasci com um defeito genético que me faz achar meio ridículas essas coisas de mãos dadas, beijinhos melequentos em público, os tatibitates de amantes, argh. Em compensação, a libido faz festa em mim, excetuando-se este pequeno detalhe).

Há muito tempo (tanto que perdi a conta) não sinto isso de palpitações, falta de ar, tremedeira, gagueira, pernas bambas e todos os acompanhamentos do amor. Não sei em que momento fechei esta porta. Abri várias, nos últimos tempos, de paixão, desejo, obsessão e tesão. Mas não de amor.

Tenham pena de mim, senhoras e senhores. Aqui jaz um coração deficiente. Embora perdidamente romântico, sonhador e teoricamente conquistável, encontra-se atualmente em estado de paralisia -- sabe o que é amor, lembra-se vagamente da sensação, mas o corpo não reage e nenhuma chave se liga fazendo a conexão entre o querer e o sentir.

E tarde da noite, pensando nos amantes apaixonados -- deve ser a primavera anunciando-se, esse banho de amor pelo ar --, vejo-me pedindo uma esmolinha pelo amor de Deus. Um amorzinho, faz favor. Um amorzinho, se não for pedir muito. Um pouquinho de emoção!, caramba... pra eu me sentir normal. Um amor pra eu me sentir alcançável, conquistável, abalável e mole, descontrolada e passível de vexames, inteiramente entregue e sem regras pré-programadas.

... Vou tentar encontrar a chave. Se não estiver enferrujada, tentarei usá-la para abrir a porta que fechei anos atrás.









25.8.04

Malícia



É isso que prometes

E é disso que preciso

Se é que me entendes

Mas não seco... não a seco

Não estourado a sós

Mas com dois pares de mãos

Nenhuma taça,

E só minha boca para beber



Posted by Hello

24.8.04

In Your Keeping (Jann Arden)



Tell me I will never die

Take away my pain

Rock me gently in your arms

Say that I'll remain in your keeping



Brush the hair out from my eyes

Read me a good story

Kiss my fingertips goodnight

Say that I can stay in your company



And I know this much is true

I have lived inside of you

You have always seen me through

While I am peacefully sleeping



You have always been my friend

I can see your beauty shining

I will love you till the end

Long will I remain in your keeping



And I know this much is true

I have lived inside of you

You have always seen me through

While I am peacefully sleeping

While I am peacefully sleeping

Posted by Hello

23.8.04


Here, there and everywhere

Jamais Vu

Desperto em minha cama com a sensação de que não me conheço, não sei quem sou e nunca me vi antes.

Aquele blusão embolado sobre a penteadeira, cujas dobras lembram o rosto de um bruxo? Esse quarto pintado de amarelo clarinho? Aquele quadro com o homem nu de Michelangelo, que lindo? Esses roupeiros e espelhos, de quem são?

Desperto assim. Com sensação de jamais vu, o oposto do dèjá vu, a impressão de que tudo o que se é, o que se viu, é inédito.

Um segundo depois, a realidade vem ao encontro do meu corpo que acordou sozinho, sem minha alma que ainda andava perdida por aí.

Então recordo:

Essa sou eu. A estranha criatura que vai aos confins do mundo quando dorme sou eu – e eu sou uma mulher canhota, pisciana instável, bom coração, com alguma ambição, uma profissão, vida mais ou menos ajeitada, sem catástrofes quotidianas, filha linda, vida boa, quase normal como ser, pouco faltando para ser medíocre.

Então me vem a felicidade das coisas simples.

Percebo, durante aqueles poucos instantes em que volto para mim, que tudo podia ser bem pior.

Com minha satisfação de Pollyanna que não durará nem duas horas, levanto-me sob a luz faceira de uma manhã nova como eu me sinto por enquanto e contemplo, dentro de mim, todos os elementos arrumadinhos da minha psique, que se ajeitam durante o sono e se desfazem aos sabores do dia.

Hoje não lerei o jornal, decido. Pretendo ser feliz por mais que duas horas, na doce ignorância dos alienados, consciente apenas de que ainda sou. Ainda estou. Ainda não me fui nem pretendo ir tão cedo. Ainda existo, timidamente, à margem dos meus sonhos, mais reais que minha existência com freqüência insípida.


22.8.04


Eu, inimiga número um de pensar as mesmas idéias mais de uma vez, que odeio rotina e coisas que dão em nada -- perco-me incessantemente nos "ses" e nos "porquês" de ti e de mim, e qual um caramujo arrastando-se por um labirinto, qual um demente preso para sempre em uma idéia fixa, já quase nada mais faço, exceto tentar chegar ao fim da espiral, voltar e me libertar após concluir algo. O que já sei, não ocorrerá, enquanto eu teimar em cavar, cada vez mais fundo, a trilha de minha obsessão.

21.8.04


Jonny Lang

Lang

Eu nem gostava de ti.

(acho que meu estado de agonia é só efeito do Jonny Lang, cantando Breakin’ Me)

Eu não gostava do teu jeito dramático, da tua pele pálida, da tua ausência de risadas (mas gostava das tuas pernas e dos teus joelhos, do teu torso de nadador, do sorriso raro e de palavras sussurradas, quase as únicas que dizias, no escuro). No balanço, isso era pouco para te amar. Eu acho. Não tenho bem certeza.


Primeiro eu queria um anjo. Quando vieste, descobri que eras alado demais para mim. Tão calado quanto um anjo, tão sem expressão quanto um, sempre com teus olhos azuis a me fitar em um encantamento que eu não entendia, naquele jeito estranho de só te mostrares ardente em um local da casa, quando eu precisava que ardesses por inteiro e me queimasses um pouquinho para dissipar o frio que me encolhia quase sempre, naquela época. Tua presença feita quase que de pluma, de nuvens e de paz celestial colidia com a minha e se criava um muro de incompreensão mútua.

Eu nunca soube namorar, e não precisavas do meu jeito de gostar -- breve, intenso e fugaz, sem me fixar em ti como te fixavas em mim. Eu não namoro. Apenas vivo.

Tu gostavas, em mim, de coisas que nunca gostei – meus cabelos úmidos, meus ombros ossudos, meus pés, minhas mãos – o que era aquilo de olhares para minhas mãos durante o tempo em que podia explodir uma bomba em outro país e matar todo mundo enquanto ainda estavas ali, decorando minhas unhas curtas e minhas veias azuis?

Sobrou somente esta música do Jonny Lang, cuja voz se confunde com a tua. De ti, sobrou uma estrelinha de cristal, uma camisola branca de cetim e uma carta manuscrita quilométrica que me machuca e esmaga, quando a leio uma vez a cada eternidade.


Ainda assim, cá para nós, podias quebrar-me menos, se nesse meio-tempo em que fui tudo menos a mulher que precisavas tivesses sido menos o homem que te tornaste e mais o garoto que desprezei, que começou com jeans rasgados como rasgado era também teu coração, exibindo-se por completo, e terminou com belas calças de algodão, negras como meu humor na última vez em que te vi para não dizermos mais adeus e foi o adeus para não dizermos mais adeus tantas vezes.


20.8.04

Fatalista

Sou fatalista: se ele não me ligou, é porque era melhor não (isso não quer dizer que está debaixo das cobertas com outra, e se quer, tanto faz mesmo, porque não era para ser igual, já que eu não toparia uma suruba e não me ligo nesses lances de “traição” se também não o amo).

Se passo uma hora escrevendo um post que se recusa a ser publicado – o micro congela bem no meio do envio à página –, é porque ofenderia os politicamente corretos – e o texto era sobre política e bem que eu estava sendo muito politicamente incorreta, e me deliciando com isso porque de-tes-to essa gente cheia de dedos que evita certas palavras mas não hesita em ser grossa em comportamento, palavras e tudo o mais, no resto do tempo.

Se meu amigo vem do Rio com a família e anseio por conhecê-lo e parte dele uma iniciativa de nos encontrarmos para um café em Porto Alegre e dois dias antes o canal do meu dente vai para o beleléu e eu saio do ar de tanta dor e não posso encontrar o Sid, paciência. Talvez ele mudasse de idéia ao me conhecer pessoalmente e tirasse seu “wowww” da minha página do Orkut, ao ver uma foto horrível minha – que sorriso era aquele na foto, meu Deus, se meu sorriso nunca foi assim? Cruzes.

Se o homem dos meus sonhos, minha outra metade da laranja que não consegui conhecer ainda a essas alturas já casou-se com outra achando que ela era eu ou se cansou de esperar sua alma gêmea, contento-me com almas gêmeas bivitelinas mesmo, não iguaizinhas, mas semelhantes como dois irmãos – mas quero com estes “almos gêmeos” fazer coisinhas que não se faz com irmãozinho enquanto espero que minha cara metade desconhecida se divorcie, enviúve e me encontre finalmente.

Se meu primeiro livro é uma bela droga sensual e volumosa que os editores particularmente caem de tesão mas amarelam para publicar, é porque não será deles o prazer – quer dizer, já foi, ao lerem, mas não terão a dúbia honra de me patrocinarem. Azar o deles.

E se o Tobias não sai do lugar – meu segundo personagem parado no tempo desde fevereiro – com seus medos e dilemas, é porque meus dilemas e medos também não me permitem fazê-lo superar os seus. Que espere então, enquanto curto um ladinho mais light da vida para só depois denunciar suas torturas. De qualquer modo, sem editor, sem leitor, não há nenhuma pressa mesmo.

Mais fatalista que eu, só minha mãe, que vive a me dizer: “O que é teu ‘tá guardado”.


Sei – eu costumo responder. – Sei, tão guardado que não vou encontrar nunca mais, né?

Risíveis Candidatos

Enquanto o pretendente pretensioso a político asqueroso gesticula e quase nos agride ao se auto-alardear, a menina e a mãe, de pé na sala na frente da tevê, imitam a moça que traduz para os surdos. O político ignorante promete mundos e fundos, e a menina dançante gesticula loucamente com seus cabelos loiros balouçantes, fazendo bico (bem que ela me diz que a moça que fala para surdos morre de vontade de falar), fazendo “nããão”, e a mãe aponta para o arrogante, arregala os olhos, levanta o dedo médio e aponta para o suposto povo. É isto, na verdade, o que o postulante a vida-mansa deseja para os desinformados deseleitores de uma vida melhor.

Esses momentos agora têm sido nossa diversão, já que a menina achou, no início, que deveria conscientizar-se politicamente (verdade, com nove anos) e, depois de perceber a maçaroca geral dos programas obrigatórios, montou seu teatrinho, onde sou atriz coadjuvante interpretando as reais intenções de nossos vilões disfarçados de mocinhos. Ontem elegemos nosso “lobisomi”, alguém com cara de, e nome semelhante, chamado Olodoni. Hoje, quem sabe quem será nossa vítima e nossa fonte de risos.

De vez em quando eu paro tudo e aviso – esse não, esse é sério. Mas isso é tão raro que não chega a estragar nosso prazer.


"Anjo"

Por acaso, descubro que alguém de quem gosto muito disse a outro alguém de quem comecei a gostar muito recentemente que "Dayse é um anjo".

Não sei o que se passa comigo, mas não é a primeira vez que me chamam assim (é bastante comum, até) e em todas as vezes que me chamam de "anjo" eu sinto vontade de bater em quem foi gentil (vai um sorriso, aqui).

Ser chamada de anjo me causa reações paradoxais. Parece que tenho obrigação de ser mesmo, não dá lugar a maldades, a malícia e a tolices.

Acho que o pior de tudo é que detesto, mas detesto, mas detesto, mas detesto **meissssssmoooo** admitir que sou tola, boazinha, terrível e imperdoavelmente ingênua para a maldade humana, tonta, quase ultrapassada em meus bons modos... Quase um anjo.

A segunda coisa que mais me "ofende", pela obrigação que me impõe, é ser considerada como uma pessoa "doce".

Quando me dizem que sou um anjo de doçura, então, meu estômago literalmente revira-se em convulsões de asco e repúdio.

Tenho nojo de anjos de doçura, e como castigo vivem me aplicando este rótulo.

Credo.

Preferiria ser considerada uma diabinha. Maluca de pedra. Doida de rachar -- infelizmente, parece-me que não tenho conseguido me colocar à altura da imagem autoprojetada para impressionar os outros.

Um dia ainda faço uma maldade das grandes, com repercussão nacional, para nunca mais ser chamada de anjo, viu K.?

"Anjo" II

Aliás, a raiz desse asco a ser chamada de anjo remonta à minha adolescência.

Cheia de conflitos e de probleminhas psicossomáticos, querendo agradar aos humanos, aos deuses e ao universo inteiro ao mesmo tempo, fui parar em uma psicóloga.

Que me disse que eu não tinha obrigação de ser boazinha com ninguém.

Acontece que eu gostava de ser assim.

Não gosto mais, mas continuo sendo.

Vou correndo marcar consulta com algum mestre em egocentrismo (e olha que me julgo bem egocêntrica, narcisista e tudo que não presta). Imagina se eu fosse realmente boazinha.

Vou tomar um purgante agora, pra me livrar dessa palavra que contamina. Acredito que se saírem chamando as pessoas de "anjo" pelo mundo, logo teremos um lugar infernalmente doce neste planeta...

19.8.04

Dez Minutos - Ao Bernardo Horta

Era setembro, dois anos atrás. Eu ainda embalada pelos sonhos plantados em mim por uma editora que me descobrira sem que eu a procurasse. Naquele momento, essa ilusão de vir a ser lançada já durava nove meses, o tempo de uma gestação, e eu acalentava esse bebê com mimos tais que, ao ser fixado um prazo final para a entrega do original trabalhado, lá fui-me para um hotelzinho em Gramado, durante quatro dias, trabalhar o finalzinho de minha primeira história, isolada e feliz (adoro estar isolada do mundo, adoro caminhar sozinha por lugares estranhos, adoro sentar em parques que não conheço e observar o mundo como se a ele não pertencesse).
No fim daquela primeira noite no hotel simpático e já cansada de olhar pela sacada e ver a ruazinha em curva e declive, as luzes da cidade turística e a programação da TV enquanto revisava o que havia feito até aquele instante, tocou meu celular e, durante os dez ou quinze minutos seguintes, tive a conversa mais generosa, acalentadora e sexy nos últimos tantos anos.
Meu revisor-copydesk me ligava. Bêbado. Ouvindo Beatles. Soltinho, leve e tagarela -- mais do que nunca --, primeiro um pouco hesitante, depois liberando-se em conversas confusas. Imagino que todas as conversas com o Be eram confusas, todas as conversas que ele tentasse manter soariam assim -- embriagadas de vida, de insatisfação e ironia, mas com tanto gusto e inteligência que contaminava seus interlocutores, fazendo-os esquecerem-se de que ele, às vezes, também se esquecia da gente, perdido em seus redemoinhos cerebrais constantes.
Meu amigo gay ou bissexual - nunca consegui definir -- derramava-se em elogios. Colocava-me para cima, animando-me quando eu quase já abandonava o "Luca" -- meu personagem que o encantava. Ele quase me confundia com Luca -- tinha razão, era meu alter-ego masculino esse personagem taradinho -- e, assim, eu a confundi-lo e ele a me confundir, trocamos as palavras mais intrigantes, provocantes e excitantes que já troquei com alguém. Confessamos atração mútua, entre risadas e tagarelices, entre brincadeiras e demonstrações sérias de seu respeito por mim como escritora -- na época, eu ainda julgava que poderia "ser" uma escritora. Com seu sotaque carioca, o Be me elevava à categoria cobiçadíssima de musa de alguém, e eu o elegia quase que meu tudo -- uma vez que conhecia tão bem meus segredos transportados para a ficção, adquirira comigo uma cumplicidade que dificilmente eu daria a alguém.
Naqueles quinze minutos de conversas quase inocentes, sem sacanagem ou tentativas explícitas de sedução, apenas falando com o coração, senti-me como uma das pessoas mais especiais do mundo -- inteligente, audaciosa, capaz de tudo, um verdadeiro sucesso prestes a ser descoberto... Dormi feliz depois que meu grogue preferido, indefinido e lindo desligou e, nos três dias seguintes, graças àquele telefonema e às centenas de músicas nos ouvidos, trazidas nos meus inseparáveis CDs, produzi um final em alto estilo, com direito a um clima para cima, bem bolado e animador para todos que lessem a história.
Até hoje Jann Arden me lembra o Be, quando canta The Sound of... ou quando escuto Ten Thousand Manics com More Than This, que fecharia o filme -- se filme fosse, meu romance de ficção.
A continuação com o Be não foi bonita. Por motivos nunca entendidos por mim -- e creio que nem por ele --, algo partiu-se lá por janeiro. Algo rompeu-se entre nós dois. Algo acabou. E vi-me forçada a acabar com ele mesmo antes da certeza de que a editora há muito já repensava a publicação da minha história, depois da pompa e circunstância com que me tratara durante mais de um ano.
Nunca fui alguém de lamentar a perda de pessoas. Quando se perdem de mim, é porque assim desejam e não lamento. Quem eu quero em minha vida eu nunca abandono, e se me abandonam, aceito. É um direito de quem não me quer.
Mas com o Be, até hoje dá um gosto amargo na boca, vontade de chorar, tremedeira e uma imensa tristeza no peito, quando penso que, por 10 ou 15 minutos, dividi com ele -- e ele comigo -- um coração totalmente exposto, coisa que comigo é uma vez em um milhão. Sou forçada a concluir, no fim, que grandes paixões entre almas são tão poderosas e destruidoras que é melhor nem tê-las. Paixões de corpos acabam. O amor de almas afins, nunca. E a dor que sobra é indizível.
Mesmo assim, Be, talvez alguém possa um dia ler este bloguinho bobo e te dizer que embora não dê para consertar nada, aquele caquinho especial, aqueles 10 minutos, ficarão guardados para sempre comigo, como relíquia de um tempo em que me achei bonita e te amei por seres exatamente quem és, com toda tua loucura, imprevisibilidade, criatividade, exposição de ti mesmo, generosidade, amabilidade, sexualidade e genialidade. Obrigada.

18.8.04

Sade/Masoch Light

Tens razão, quando meu olhar vai descendo, deslizando, escorregando por teu corpo, baixando, demorando-se, contando até tuas células no prazer de te mirar e teus quadris se projetam à frente na poltrona em que estás, e teu rosto se pinta de um rosado forte, e te deixas admirar.

Tens razão, quando dizes que sou maliciosa e covarde.

Ah, tens razão, quando encontro relevos entre as rugas dos teus jeans, quando adoro o desbotado do algodão azul sobre teus pêlos negros e sobre outros contornos que se revelam aos poucos, enquanto meu olhar não te devora – mas apenas passeia, sem pressa, por tua paisagem.

Desço aos joelhos, vou até as pernas e volto. Teus pés não me atraem – movem-se inquietos, por quê?, pergunto com maldade, ouvindo-te rugir de insatisfação. Eu rio.

Tens razão, quando me chamas de teaser. Não te quero para nada além de meu laboratório de experiências sensoriais – sensuais –, meu campo de provas para minha força-de-vontade, meu quadro vivo, o único horizonte que me interessa aquém dessas janelas às tuas costas.

Então levantas. Desapareces dentro da casa, irritado, e eu sorrio, fechando os olhos. Contento-me em te ver frustrado com minha indecisão eterna entre ter teu corpo ou teu espírito. Se aquele, não este. Nós dois sabemos que não coabitaríamos pacificamente como amantes e como parceiros de espantos de duas almas semelhantes. Enquanto não és meu, pelo menos posso iludir-me que um dia serás. Se fores, um dia terás sido, apenas. Prefiro então a incerteza do que ainda não ocorreu à certeza triste do que já acabou.Então tens razão – ainda sou tua viajante, aquela que te percorre tanto só com o olhar que já ganhou milhas de prêmio, com direito a um dia chegar ao outro lado do planeta, quando mudar de idéia e resolver parar neste teu campo de sonhos, elevado e morno, na posição central de tuas entrepernas – cânions – onde minha mão afundará.


... Não.

Não voltaste.

Tu, das minhas melhores noites, que existes de não-matéria, a matéria dos sonhos, perfeita e impalpável e tão real na estrada freudiana pavimentada por fiapinhos da consciência, de que pedacinho da minha consciência surges entre meus desejos e os realizas todos, mesmo aqueles que não conheço, quando fecho meus olhos à noite? Não preenches os desejos carnais – esses tão banais e fáceis, tão insatisfatórios no vazio do resto, sempre –, mas outros, naturais e tão inesperados por isso mesmo, enquanto meu corpo sai voando levado pelo vento onírico.

Tu, que aperfeiçôo nas minhas ficções com tantos defeitos que te torno humano, perfeitamente dotado de credibilidade como ser de carne e osso, não sendo mais que criação, aonde tens ido, quando não trafegas nas vias congestionadas do meu inconsciente, enquanto o mundo silencia e espero ouvir tua voz?

Tu não podes vagar por outros mundos, quando te quero no meu.

Tu, minha fantasia gentil, minha companhia disfarçada de delírio e mesmo assim tão lúcida, não tens permissão para aqueceres os sonhos de outros, se não te conto para ninguém.Volta aqui, homem dos meus sonhos. Volta. Invade meu sub, meu in, meu consciente, enquanto finjo ter ciência de que não existes. Não és. Nunca foste. Mas me habitas.

16.8.04

Sonhei com um beijo bom como há muito não. Romântico. Na fronteira entre o desejo e o medo. Leve. Quase não-beijo no roçar de lábios. Sei quem me beijava, mas na cidade em que eu estava quem eu conheço não pretendo beijar. E quem me beijava mora perto de lá. Mas nem tão. Como explicar que ele me mostrava a água, o lago, na cidade com muitos lagos e do outro lado o povoamento sobre a colina com casinhas brancas e igreja no alto e eu lhe dizia que não podia cruzar o lago para chegar à cidadezinha, pois precisava acordar?

Pretendo voltar ao meu sonho lúcido esta noite. Te encontrar novamente. Se prometeres também voltar e me explicar por que me mostraste outro lugar, não aquele em que brilha o farol.

15.8.04

"I wanna marry a lighthouse keeper and keep him company

I wanna marry a lighthouse keeper and live down by the sea"



Quero casar com um zelador de farol e lhe fazer companhia

Quero casar com um zelador de farol e viver à beira-mar.

Down to Earth

Ninguém morreu. Só minha alma está sombria como num dia de velório com tempo chuvoso. Terrible, my friend. Como não quero incomodar ninguém, consolo-me com minha letra-hino, algo que canto meio aos berros em dias de angústia desde... deixa pra lá.



Ó:



Feito Um Picolé no Sol

(Nico Nicolaiewsky)

Quero um barco meio mar, um meio, não achei não veio, pra sair do charco feio. Quero um barco meio mar, um porto meio lar, um corpo feito pra se amar e sem receio. Meio assim doente e de repente cheio desse olhar ausente, meio louco, meio no sufoco, meio coca-cola, meio mal da bola, meio inconsequente.

Como se no meio da cidade, na velocidade, na saudade, na maldade à toa, nessa claridade tanta coisa boa se desmancha feito um picolé no sol, e feito um picolé no sol eu quero estar agora pra esquecer do mal que tá lá fora, me esperando pra cobrar a taxa, tá com a mão toda suja de graxa.

Tô ficando meio assim xarope dessa lenga-lenga, já amarrei o bode. Pode crer que tudo tem a ver com tudo, tem a ver com o mundo, tem a ver com ser perfeito. Tá na rua, tá na banca de revista, tô na pista e não te desconcerta, sempre alerta na notícia esperta, nesse compromisso, numa dose certa.

Veio como onda bomba longa estória nua e sem certeza sob a mesa tua. Crua e sem semente mente e me confunde, funde a minha e a tua nesse instante-anti. Vejo um pôr-do-sol brilhante como nunca dantes me arriscara e foi tomara, cara, um primeiro passo dum segundo passo dum terceiro passo, eu acho.

No caminho dessa descoberta não tem compromisso com trilhar o que já foi trilhado. Deixo tudo ali do lado e parto cego e sempre em frente um tanto quanto alucinado. E nado para estar presente e nada como estar assim ciente, sem estar cansado, sem estar à margem, sem estar doente, sem faltar coragem. Sem querer fazer charminho, sem querer carinho, sem querer carona.Quero um barco meio mar, um porto meio lar, um corpo feito pra se amar. Crua e sem semente mente e me confunde, funde a minha e a tua nesse instante. Um primeiro passo dum segundo passo dum terceiro passo.

E depois

Só nós dois

Tudo o mais

Tanto faz

Quero amor

Quero luz

14.8.04

Da Série "Abobrinhas podres":



Glórias passadas não enchem cofrinhos.



13.8.04

Quem mudo quer, mudo perde.

Eutu

Tueu

Doeu,

Seres meu?

Doeu, separar

Apartar a carne

Afastar, matar

De insatisfação

Na separação?

Doeu,


Seres meu.

12.8.04

Vag'alma

Reconheci tua cor, ao te conhecer.

A estranha sensação de te ver e saber que eras tu sem saber quem eras, o reconhecimento no meu olfato ao inspirar teu cheiro, tuas mãos semelhantes às minhas, um estremecimento no coração quando pensava em tua infância, no que eras lá no fundo, diferente de quem eras à superfície.

Pensei te reencontrar quando te encontrei.

Parecia-me que tuas experiências eram as minhas, ligadas não no agora mas no antes longínquo cujas lembranças esmaecidas haviam permanecido nas teias de aranha do espírito e nas gavetas semifechadas da consciência.

(Havia um relógio com pêndulo que hipnotizava, para lá e para cá, em minhas horas de resvalar para o sono, e o relógio me contava de tempos passados, do passado contigo que não era o ontem de agora)

Quando convivemos, não vivemos aquilo que outrora que nos unira, mas um presente moderno em que não eras mais o poeta sensível, mas o lógico frio. Não eras mais aquele que vivia das coisas do ar, e só querias agora os bens terrenos. Todos. Toda a matéria, inclusive a dos corpos. E sentias náuseas ao te deparares com alguém como eu, poeta na prática, geneticamente programada para flutuar, quando tua poesia era teórica, um mero exercício do pensar.

(Ao te olhar no espelho um dia, cogitei onde estarias escondido, dentro de ti, se quem eu via era a casca apenas semelhante, a camada de fora quando eu buscava o cerne de tua alma)

Te perdeste de ti, tempos e tempos e tempos atrás, tanto tempo que não me interessa mais a tentativa de descobrir quem foste para mim. Eu, ainda sendo quem fui, desisti de te alcançar e já sei que agora ando sozinha. Aquele que foste perdeu-se de mim, entre essas tantas vidas, e mudou.

Agora aquele que és sente um rancor profundo, destrutivo e terrível, ainda que me adore conscientemente, porque continuei a mesma, ao longo desses caminhos... Tão a mesma que aquele que te tornaste não me perdoa por ter largado tua mão e te deixado mudar.

Sinto, por isso. Quando sentir que começarei a me perder dos que amo novamente ao voltar no depois, começarei a espalhar bilhetes a mim mesma pelo planeta inteiro, lembrando-me de reencontrar aqueles a quem deixei, pedindo que não me larguem mais, e que não me façam sentir essa brutal sensação de que sou, mas não estou. De que vim, mas fora da hora, desencontrada de todos, sozinha em minha busca eterna àqueles a quem amei.

11.8.04

Flor do Deserto

Não sou teu bichinho

Vem cá, vai lá, senta aqui, rua!

Não sou teu aparelho de TV portátil também

Com imagem, som e algumas distorções,


Que carregas pela casa, desligas quando queres,

Que levas para a cama e com o qual interages como louco – às vezes

Não sou teu jornal – nunca conseguiste ler minhas manchetes gritantes.

Não sou sequer o cacto que te dei – que esqueceste de regar e que, embora tão resistente, mesmo assim morreu.

Não sou teu remédio, que rejeitas na pretensão de morrer.

Nem teu gole

Nem teu pesar angustiado.

Sou apenas teu filme em preto-e-branco.


Sem legendas.

Em língua estrangeira.

Incompreensível.

Dragão

‘Tão ‘tá, meu amigo grandão.

Te irritas porque vês teu nome como um palavrão,

Mas o que és, então, se não um dragão?

Com esse rabo feioso e teu bafão

Querias o quê?

Ser chamado de Homão

Se quando tento te dar a mão

O que recebo é um patão?

Acho que a solução

É arranjares um mulherão

Para apagar todo esse fogo-tesão

Que te queima e sai pelo bocão...

10.8.04

Texto Bom I (que mania de seriar as coisas, eu tenho!)

Yeah, Man!



"Era fim de dezembro e um perfume de uvas maduras invadia meu cantinho de pensar. Eu estava padecendo da agonia da incompletude, se é que existe essa palavra, uma espécie de angústia que me abatia ciclicamente, amenizada apenas pelo ato de escrever. Um tipo de insatisfação com a vida, como se em algum ponto do caminho eu tivesse errado a encruzilhada e já não desse mais tempo de cumprir o sonho juvenil de ser escritor. Precisava, então, exercê-lo um pouco, ainda que leitores não tivesse e não acreditasse contribuir com qualquer um o simples fato de dividir minha agonia."

(Miguel da Costa Franco)

http://www.nao-til.com.br/nao-76/migcompl.htm

Pensamento I para uma Noite Insone -- A Incompletude das Palavras

Qualquer texto literário deveria vir acompanhado de um fundo musical.

Para grandes dramas de amor e lágrimas de arrependimento, Gone with the Wind.

Para textinhos sacanas e sexys, Sexual Healing.

Para textos lúgubres que prenunciam tragédias, Addagio for Strings (pancada na alma).

Por que não há música embutida nas palavras?

Para cada texto, deveria haver uma imagem.

Para cada texto, uma imagem e um som. Um ritmo e uma cor. Um complemento para dar o tom, imersão completa, mergulho dos sentidos, passos que afastam do real.

Às vezes, quando escrevo, sinto vontade de colocar entre parênteses (“Para ler ao som de...”). Talvez deva fazer isso.

Ah, quanto o leitor perde, quando não sabe sobre que fundo musical o escritor compõe suas ficções...Sobre que imagem compõe um personagem... Sobre que estado da libido faz um poema erótico.

Não é a essa espécie mágica de junção das formas artísticas que se chama “cinema”? A união perfeita de palavras, música e imagem?

Na próxima encarnação, quero ser roteirista, compositora musical, pintora, bailarina, diretora cinematográfica... Uma vida é pouco, para tantas aspirações e tantos desejos estéticos que sufocam pela impossibilidade de se realizarem.

9.8.04

Ao Leitor Desconhecido

Tenho leitores fiéis desse bloguinho sem pretensões, inconstante e quase irresponsável. Conheço muitos deles -- alguns fazem comentários por e-mail (isso aqui não facilita comentários e só complica), outros vêm e vão mas geralmente sei quem são.

Tenho um leitor mais fiel que todos, que vem à noite, sempre, sagradamente, todos os dias. Quando penso que esqueceu de mim, lá vem ele com seu I.P. Sempre o mesmo, entre 21 horas e 2 da madrugada.

Eu, que adoro um mistério, fico a imaginar: me conhece? Algum dia já nos vimos? Nos encontramos? Nos desencontramos? Brigamos? Ou algo mais? ... Nesta última possibilidade não creio. Mas a imaginação é fértil.

Imagino-o (não sei por que, acho que é homem) sentado com um sanduíche na frente do micro, após um longo dia de trabalho, pensando: "o que será que há lá hoje?". De vez em quando ele encontra algo bom que escrevi. Em outras noites, decepciona-se porque peguei leve ou pesado demais.

Às vezes, ele pensa em me escrever, depois resolve que não tem nada a ganhar com isso. Mas por falta do que fazer, continua me freqüentando.

Ó eu aqui, caro leitor, a imagem da flagelada: cobertor sobre as pernas, meias de lã, luvas com dedos cortados, touca, blusão sobre blusão, banho tomado antes de me transformar nessa bola de roupas, cabelos cortados ante-ontem e que agora fazem tóim-tóim, já que os cachinhos reapareceram todos no corte curtinho, para meu desespero. Ó eu aqui perfumada (vício de perfume) sem dormir, trabalhando como uma alucinada e roubando este tempo de mim mesma, só pra te escrever!

Mereço ou não mereço uma resposta? Hein?

... Pensando bem, deixa assim. Vou pensar em algo atraente pra poderes ler amanhã à noite -- até lá, se Deus quiser e minha filha-espoleta deixar, terei dormido um pouco e a mente não estará assim tão atolada nessa neblina cerrada de sono, como a noite gélida lá fora. Pensando bem, enquanto houver mistério, talvez continues intrigado, querendo me ler.

Ou nem estás intrigado e eu alucino-me em fantasias tontas.

Anyway, obrigada. Vou agora curtir meu resto de madrugada frente a versões sobre plataformas marítimas -- muito diferente de todos os meus desejos para uma hora dessas.

6.8.04

Herói do Dia

Hector Babenco, que disse (quase) tudo o que eu diria ao Mr. President do nosso país. Disse ele, com fúria quase igual à minha, comentando sobre uma proposta de "dirigir" a produção cultural do Brasil:

"Dediquei toda a minha vida à produção cultural neste país e não aceito ser controlado e governado por um bando de incompetentes".

Não sei por que, atitudes como esta proposta indecente não me surpreendem, vindo de onde vêm. Pouquíssimas coisas neste mundo me tiram totalmente o controle e a lucidez. Uma delas é a censura ou um dedo apontado dizendo o que devemos sentir, fazer ou dizer. E eu mordo quem me mandar ter "calma". Um pouco de fúria faria bem, aos intelectuais, numa situação dessas.

Dá vontade de morrer -- ou de matar.



5.8.04

O Beleléu

O Beleléu é um lugar encantado.

Às vezes, é onde eu moro, dependendo de quem pergunta.

Às vezes, parece perto, como quando alguém que detesto some-se nele e ainda assim temo seu retorno.

Em outras ocasiões, o Beleléu parece-me enorme, para conter tantas coisas.

É lá que estão minhas esperanças literárias. Há, lá, o ressarcimento de prejuízos, amigos queridos que para lá partiram e não mandaram mais notícias.

Aliás, raramente quem vai para o Beleléu manda notícias. Deve ser longe, mesmo, mas certamente há serviço telefônico, já que minha linha volta e meia vai para esse lugar.

Amores vão pro Beleléu. Inimigos nunca.

Contas não pagas nunca vão para o Beleléu. Lá todo mundo tem as finanças em dia, parece-me.

Uma meia-irmã minha foi-se pro Beleléu e não sobrou nem rastro dela por essas bandas de cá.

Deve haver muitas oportunidades de trabalho lá. Perdi vários projetos e só depois descobri que haviam ido para o Beleléu.

Beleléu fica perto das Cucuias. Ambos devem ser locais paradisíacos -- com fartura de bens, dinheiro, pessoas incríveis e sonhos lindos que também vão para lá, de vez em quando.

Um dia ainda descubro um mapa, faço essa longa viagem e me vou também para o Beleléu, para rever tudo meu que foi para lá e ser feliz.



3.8.04

Letícia-pé-no-chão

Letícia, nove anos em outubro, escreve uma carta em resposta a todas as cartas apaixonadas de seu pretendente também de nove anos, colega de aula, a quem ela não dá a mínima importância. A carta:

"Isaac, obrigada por todas as cartas que tu me deste. A casa que tu desenhaste é uma gracinha e o carro é maneiro porque é sem teto, mas quando chover a gente vai se molhar. Eu vou fazer um desenho da gente se molhando:"

E desenha um temporal-dilúvio caindo sobre duas figurinhas dentro de um conversível.

Depois, pergunta, deixando espaço para a resposta:

Responde: O que tu achaste:

Resposta do Isaac:

"Achei bonito. Amor, vamos casar!"

***

Isso ao mesmo tempo em que me faz rir, me dá uma ternura imensa e uma aula sobre as relações homem-mulher. O menino está cego. Ela não.

2.8.04

Forças Naturais

Entre minhas pernas brotam todos os dias

Tempestades e maremotos

Que te afogam e te levam

Para o fundo de mim



Entre minhas pernas,

Relevos alteram-se,

Paisagens transformam-se,

ciclones te carregam com força

E te contorces em meio a redemoinhos



Entre minhas pernas brotam sempre

Cataclismas, terremotos

E calor de vulcões

Mas a lava que vem é de ti

Na nossa erupção

Bola Fora

Por um instante que demorou duas horas e poderia durar dias, senti-me idiota. Uma sensação de ser tola, uma coisa assim que tira o sorriso da cara e a deixa comprida e atoleimada, como se duas grandes orelhas despontassem, subitamente, na cabeça. A burrinha em forma de gente, rara sensação felizmente, mas que me abate medonhamente quando se anuncia.

Por um instante de impulsividade natural em mim, disse algo que julguei ser mal recebido, julguei ter deixado um outro ser humano desconfortável.

Aqui, no cantinho onde me coloco, às vezes erro o alvo por causa de uma perspectiva distorcida e acabo acertando em pontos onde dói, nos outros, não onde dá mais prazer.

Por um instante de duas horas tentei distrair-me e pensar que, ora, eu também me sinto sem graça às vezes, como julguei ter feito com alguém. Nem por isso morro -- ao contrário, o "sem graça" é mais como se tivesse recebido um pacotão de presente na forma de palavras, que não sei como abrir, ao qual não sei como reagir ao ver o conteúdo, mas que me deixa sem reação não por ser ruim, mas por ser apenas inesperado.

Será que deveríamos ter tantos cuidados para elogiar companheiros, amigos, namorados, conhecidos, colegas e parentes?

Nas duas horas em que minhas orelhas cresceram e se dependuraram na frente dos meus olhos, impedindo-me de ver a realidade, julguei-me incapaz de discernimento e jurei nunca mais elogiar alguém sem que tivesse muitíssima intimidade.

Depois das duas horas, uma mão gentil afastou primeiro uma, depois aquela outra orelha, arrancou-as de minha cabeça e, no lugar, colocou uma coroa de flores do campo. Senti-me linda e boa novamente, limpa e sem pesos nos ombros. Afinal, eu apenas dera mais do que as pessoas costumam receber, e o constrangimento de quem recebeu o elogio não era mais que a falta de jeito de quem não recebe presentes assim.

Guardo numa gaveta as orelhas. Servem para lembrar-me de que me esqueci do que as palavras fazem com os sentimentos, quando lançadas por criaturas comandadas por emoções e recebidas por outras, desacostumadas a elas.

Enquanto isso, no concurso de homem mais belo...

Belo, inseguro e tão bobo, tão lindo e vaziozinho, tão perfeito e tolinho. Ah, que homem espaçoso, com esse eco por dentro, como um poço sem água, como caverna, salão, apenas a pose e a vaidade, esse rei da veleidade.

Pobrezinho do bonito...
Garçom, me traz um igualzinho pra comer agora, cru mesmo, sem tempero – Não, para viagem não, é perecível, deteriora-se rapidamente quando tudo começa a esquentar...

1.8.04

Clueless

Ultimamente por ti, tudo se faz poesia

É tua boca, é minha cisma, é tua língua, meu prisma.

Teu idioma que desconheço, teu labirinto sem começo

No qual me perdi já no meio, tentando te achar no caminho.

Teu lirismo inusitado, tantos estilos, teu beijo sonhado.

Meus poemas banais, meus modos que se fingem naturais

Teus tantos monstros e mitos, meus tantos pedidos aflitos

Para que fales, para que me sonhes, para que me digas

Em que cores te encontro, em que caminhos te perco

Em que humores te encanto, em que suspiros te acho

Em que traço te descubro e em que letra te cativo

Querido E. II

Querido E.,

Plantaste uma árvore adulta nas costas.

Plantaste em terreno fértil, pois de ti vem adubo para tua planta e para mil criações e cultivos imaginativos de outros.

Tomara que o peso não te sobrecarregue – detestaria te ver corcunda.

Se cada galho de tua árvore fosse para um amigo, terias de ter cem corpos para estender os ramos..

Se colocares mais alguma coisa perto dela – pássaros, frutos ou nuvens – te arriscas a seres escalpelado para seres feito de tapete.

Pensando bem, até que seria boa idéia, mas que tal seres tapete sem te tirarem a pele? Tapete de parede, decorativo. Ou...

Espero que não leves a mal minhas sugestões.

Bendita tua insanidade, menino-prodígio. És apenas um pouco mais maluco que eu, mas um dia chego lá.

Quanto a mim, se fosse tatuar algo, seria a ti. No coração.