22.4.08

Diário de uma Mulher Comum XIV

Li, em algum lugar, que quando alguém morre, é o fim do mundo.
Não para quem fica. Não para os parentes enlutados. Não para os amigos que sentem a dor brutal da perda. Não para os clientes, os credores, os amores.
Todos os dias o mundo acaba.
Para quem morre, o mundo acaba-se.
De repente, não mais os amores, não mais as canções, não mais os clientes, não mais os risos, nem preocupações, emoções, esperanças, planos, problemas.
Com um grau maior ou menor de sofrimento, o mundo acaba para quem fecha os olhos pela última vez.
Talvez haja outro mundo -- não sei.
Sei que existem coisas que não se pode explicar.
O mundo acabou-se para o Paulo, tradutor gaúcho e colega, ante-ontem no fim da manhã.
Antes de ante-ontem, eu o vi quando o mundo quase terminava para ele e, desde então, o mundo para mim ficou meio trêmulo, meio oscilante, meio incerto e desconcertante. Choque. Emoção. Tristeza.
Embora o nosso mundo tenha se apagado para ele quando fechou os olhos para sempre, eu quero pensar em algo que lhe deu alegria e que talvez sirva para dar alegria a mim também, embora não possa compreender direito como funciona um outro mundo que às vezes se mostra nesse estado brumoso entre o sono e a vigília.

Alguns anos atrás -- não sei se três, quatro ou cinco --, liguei para o Paulo em uma certa manhã. Não sabia se deveria. Não queria que me considerasse uma delirante-louca-desequlibrada-ridícula. Mas liguei, porque o sonho que eu havia tido não pertencia a mim, mas sim a ele.
Perguntei-lhe, brevemente, se a sua mãe era viva. Ele respondeu que sim, muito surpreso. Eu ri, e lhe disse, então, que apenas lhe contaria meu sonho, mas que ficava aliviada ao saber que sua mãe estava viva e bem.
No sonho, a mãe do Paulo havia morrido, mas me pedia para dizer-lhe que estava bem, e que ele não devia preocupar-se com nada. Que ela não sofria e que, ao contrário, estava tranqüila e que ele precisava saber disso.
Alguns dias (não recordo quanto tempo) depois, o Paulo ligou-me, e eu já nem lembrava mais dos detalhes que lhe contara daquele sonho, mas ele recordava cada palavra. Ligava-me para me dizer que sua mãe havia falecido, mas que ao pensar naquele sonho que eu lhe havia transmitido, sentia-se muito melhor.

Sempre tive esses sonhos estranhos que não me pertencem. Somente duas vezes transmiti aos outros, porque achei que era meu dever (em geral ficam na família, e na maior parte das vezes, são certeiros e nunca bons). Na segunda vez que sonhei e achei que deveria transmitir à pessoa, felizmente o sonho era um absurdo bobo, que não tinha nada a ver com a sua realidade, e já não recordo o sonho direito. Com a mãe do Paulo, também pode ter sido uma coincidência incrível, sonhar com uma mensagem positiva de sua mãe falecida antes, para que, quando ela fosse embora, ele tivesse algum consolo.

Agora, não sonhei nada com o Paulo, não daria uma de profeta forçadamente, não diria que "já sabia".

Não sabia, não, e quando eu soube da sua doença, apenas 10 dias atrás, senti o mesmo choque que todos sentiram. Que só aumentou ao vê-lo no hospital, no sábado. E que se transformou em tristeza dolorida no domingo, em seu sepultamento (na mesma capela do mesmo cemitério onde meu pai foi velado e enterrado).

Queria ter a certeza que o mundo do Paulo não terminou. Não tenho -- logo eu, tão "espiritualizada", tão "isso", tão "aquilo", tão agarrada a qualquer chance de acreditar em algo.

O nosso continua, com a lembrança dele -- que teve o "azar" de falecer em um feriadão. Sei que no futuro isso não importará nada, mas teria sido reconfortante para a família se um grupo maior de nós, tradutores, estivéssemos lá para apoiar, demonstrar nosso carinho, levar flores, essas coisas. Mas o Paulo deu azar. Faleceu num feriadão.

Assim como outra pessoa de quem eu gostava e que faleceu no mesmo dia que o Paulo, mas à noite, de ataque cardíaco, dentro da casa onde eu morei por 6 anos e que era vizinha da minha mãe. Ô, mundo.

Paulo fechou os olhos -- mas de um modo muito peculiar, me deu umas duas ou três lições de humildade muito pessoais, além de bons bate-papos ao longo de uns sete anos. Poucos papos. Poucos encontros frente a frente. Mas vários momentos de gratidão, de gentileza, de risadas e de sensatez.

O fim do mundo chega para todos -- eu só espero que alguém diga, de nós, o que ouvi dos familiares dele. Que era um pai para todos. Que era um ser humano generosíssimo. Que pensava sempre primeiro nos outros.

Difícil esquecer alguém assim.

Sei que a morte não pode ser entendida além do fim físico. Eu, que já a vi tantas vezes, em encontros tão significativos, acho que ela serve apenas para ensinar os vivos a viverem melhor. E o Paulo me deixou uma ou duas lições sobre isso.

Dayse -- após um fim-de-semana "inesquecível" e ainda meio perdida nas reverberações emocionais.

2.4.08

Minha indignação é dolorida, meu coração é apertado e meus dias, preocupados.
Meu espanto não é novo, e meus berros são eternos (não de agora, não dessa vida, tenho certeza).
Pensando em
Mariana Almeida Andrade,
Isabella Nardoni
e tantas outras meninas, cujas mães perguntam-se, desesperadas, onde estão suas filhas e seus braços abraçam agora o vazio, peço que minhas amigas perguntem-se, sempre (como eu me pergunto, sempre que minha Letícia não está ao meu lado):

ONDE ESTÃO MEUS FILHOS?
COM QUEM ESTÃO MEUS FILHOS?

... Que minhas amigas e todas as mulheres e homens do mundo que amam seus filhos possam sempre responder a essa pergunta com tranqüilidade.