8.1.06

Você não gosta de mim,
mas seu marido gosta.
Ele não tem motivo para gostar,
Nem você para desgostar de mim.
Se me conhecer, verá que sou inofensiva.
Que canto porque sei e porque gosto. Que danço muito, mas fecho a janela que dá para a sua.
Que não saio para a rua quando todos saem, durante o dia, mas não há macho me sustentando e só não a vejo mais porque estou trabalhando e não há necessidade de lhe explicar que meu trabalho se faz com música alta e no quarto sim, mas é honesto e nada tem a ver com suas fantasias.
Você não gosta de mim, mas seu marido sim.
Não gosto de seu marido, nem do marido de ninguém. Na verdade, minha próxima chance de me apaixonar provavelmente será na outra encarnação. Nesta anda difícil.
Vizinha, meus saltos altos, meu batonzinho, meu perfume e meus cachos, meu vestido e minha voz não querem dizer nada. Eu uso desses artifícios para não me esquecer que ainda sou mulher (juro que em grande parte do tempo nem chego a me perguntar se sou, tão ocupada estou sempre com questões mais urgentes). No fundo, não sou feminista, mas nem sou tão feminina, e nem sei o que sou. Provavelmente não sou nada do que outros vêem, nem sou aquilo que penso ver em mim. Você não gosta de mim, mas seu marido não compreende que prefiro ter amigas que admiradores sorrateiros que me espiam do cantinho da sala na frente da minha janela. Prefiro, vizinha, conquistá-la, e ser um pé no saquinho de seu homem.
Esqueça-me.
Nem moro aqui.
Habito, apenas, porque algum lugar há de ter o corpo para largar a si e às suas tralhas -- mas em noventa por cento do tempo em que não me alugo às palavras (essas sim, minhas comandantes tiranas e soberanas), minha alma sai pelas janelas, sobrevoa as árvores, mete-se em becos e vive paixões inventadas e conquista amores reais enquanto meus olhos estão fechados.
Como você vê, vizinha, vivo entre a palavra e o sonho (sono, pouco). Não me sobra, entre os dois, tempo sequer para planejar paixões obscuras.
Deixe-me.
E se meu canto lhe incomodar, ligue sua máquina de lavar barulhenta, seu liquidificador, seu aspirador, e vá torcer seu narizinho para a louça suja (e não ligue, se seu genro comentar "Mas como canta bem essa mulher!" - não escute, prefira o som do programa dominical na TV. Afinal, você é apenas normal.).
Não me perturbe. Já tenho muito o que fazer, tentando me prender ao chão.

4 comentários:

Anônimo disse...

O que tá pegando? ... Isto é real ou ficção?

bjs

Anônimo disse...

Se for ficção, Dayse, está muito bem escrito, de imaginar cada cena relatada! Se for real.....puxa vida! O que é isso? Um abração, Lúcia.

Anônimo disse...

Esta interessante escrita prendeu-me muito como leitor(a) e, já tinha reparado como escreve bem e até com muita responsabilidade, quando li sobre a descoberta e leitura do diário de Pepys ( poderia escrever até um Romance histórico, foi essa a impressão com que fiquei ).É muito original também.

Anônimo disse...

Nem cogitei não ser real como tô vendo aqui...
Que maravilha... Lidar com a curiosidade alheia, com a não convencionalidade (?) do trabalho, qdo todos esperam algo 9 to 5...
Sua resposta na mesma direção, contrária à que iria um texto de Nelson Rodrigues...
ADOREI esse seu texto, lirismo em alto grau pra uma situação tão "normal"... Pq vc não dá pra ela ler? Talvez ela entenda que nem todas as reações são previsíveis e que há pessoas diferente no mundo, que ainda questionam e pensam.
Bjo.