29.9.04

Bonita

Isso, de a gente acostumar-se com a própria cara, é uma coisa esquisita.

Durante minha vida inteira eu nunca soube se era bonita ou não.

Quando tinha uns treze anos, uma coleguinha me disse que "ele" (ele era o garoto mais lindinho e cobiçado) me achava uma gata. Achei que havia se enganado. Jamais pensaria em mim como "gata". Não deu em nada, mas nunca me esqueci de quem me chamou de "gata" pela primeira vez.

Então, aos vinte e tantos anos, fui ao Rio de Janeiro e um homem lindo, amigo de amigos, comentou que eu era um "avião".

Nossa.

Eu de calça jeans, blusa branca, meu batom e minha cabeleira -- tudo isso junto perfazia um avião. Só não saí voando porque não acreditei naquilo e porque não deu tempo de conferir, já que na mesma noite voltei para Porto Alegre e, assim, não consegui mostrar ao moço que eu conseguia decolar...

Então, de repente, senti-me feia, feia, feia, durante sete anos. Muito feia.

Por força de um homem que dizia me amar mas me achava feia -- meus pés eram feios, meus cabelos deveriam ser lisos, não encaracolados, eu me vestia primeiro bem demais e depois mal demais, era magra demais, deveria ter unhas compridas quando as mantive sempre curtas...

Então veio o limbo.

Eu não era nem feia, nem bonita. Apenas uma mulher. Comum. Comum. Comum.

E então alguém me disse, novamente, que eu era "fascinante.

"Fascinante" não quer dizer bonita. Mas já ajuda.

E neste ano, descobri finalmente que não apenas sou, mas me acho muito bonita.

Levei minha vida inteira sem saber que me achava bonita e que sou mesmo, e isso aconteceu apenas graças a uma pergunta e a uma pesquisa que vi na tevê.

Um amigo que também me acha "fascinante" riu de mim e me chamou de narcisita.

Nascisista, eu?!

É. Narcisista. "Tu te adoras", disse ele. Eu me adoro?, pensei. Então, ele me perguntou:

"Se tivesses de mudar algo na tua aparência, o que mudarias?"

Então descobri que não mudaria nada. Que, na verdade, nunca pretendera mesmo ter cabelos lisos e que meus cachos (ai, estão adoráveis agora!) são um diferencial. Descobri que meus olhos são lindos, brilhantes, expressivos. Que não há nada de errado com meu nariz, meu queixo, minha testa. Que minha cara de menina, que sempre me deixou chateada por me fazer parecer mais jovem do que era, agora trabalha a meu favor, quando já não sou mais menina. Meus lábios? Ora, uma boquinha tão bem feitinha, qual é o problema, afinal? E minhas sobrancelhas escuras e bem feitas, nada mais gracioso.

Além disso, na tevê, mostram uma pesquisa feita por psicólogos. Mais uma daquelas pesquisas inúteis que só servem mesmo é para encher espaço na tevê quando não têm nada mais interessante para mostrar. E a pesquisa diz que a maioria absoluta das mulheres não está contente com seu corpo, rosto, etc, e gostaria de ser diferente.

E respondo, em voz alta: "Eu não!".

Para quê?

Amo minhas pernas, adoro meu bumbum, gosto de minhas mãos longas, minha cintura e minha barriguinha quentinha (quase plana). Gosto dos meus pés, muito, muito, muito. Adoro meus ombros (não adorava, mas descobri que Caetano Veloso tem ombros tão ossudos quanto os meus). Gosto dos meus seios que não são nem de menos, nem de mais. Reclamo que sou magra, mas na verdade adoro saber que posso comer um boi, que logo meu cérebro inquieto trata de acelerar tudo e queimar todas as calorias, me fazendo ansiar por mais um boi e nem assim engordar. Gosto da sensação de que meu corpo pode fazer o que eu mando, desde curvar-se de costas até encostar as mãos no chão fazendo "ponte", até sentar com as pernas retorcidas em posição de ioga, até estralar todinhas as articulações fazendo minha filha cerrar os dentes horrorizada, até dançar loucamente, até fazer outras coisas muitíssimo secretas com partes também muito particulares que eu jamais ensinaria para nenhuma outra mulher para não perder a vantagem competitiva...

Meu corpo me ajuda. Graça ao fato de não viver para comer e de não ter problema de coluna, nem varizes, nem coisas desagradáveis semelhantes, ele suporta muito bem longuíssimas jornadas de tradução que, às vezes, duram (como três dias atrás) 30 horas direto, sem dormir, sem praticamente levantar, quase sem comer.

Em resumo -- sou narcisista mesmo, e a-do-ro a Dayse que só recentemente descobri.

Se eu mudasse qualquer coisa em mim, ah meu Deus, morreria de saudade do que era antes -- do que sou agora, com toda a estrada percorrida, com minha cicatriz na testa de uma queda de cima de um guarda-roupas quando era pequena, de uma outra minicicatriz quase invisível no queixo que não sei de onde veio e parece que já nasci com ela, de todas as minhas antigas células. Narcisista, eu?

Sou, sim senhor. E me amo a cada dia mais, assim, naturalmente, sem cabeleireiro, sem manicures caras, sem spa, sem regime, sem nenhum sacrifício para ser apenas eu, sem vergonha e sem modéstia.



E eu ainda disse que nos próximos dias não escreveria quase nada...

Pra ver como sou.

Pra ver que o que eu digo não se escreve. Ou se escreve mais do que eu digo.

Já nem sei.

27.9.04

(H., are you really going to France to marry a mermaid?)

Onde lanças tua âncora,

Meu pirata insensato,

Quando eu, embalando teu barquinho

Vejo só tanto luar

E nada de ti para eu naufragar ?

Meu corpo-mar quer te afogar,

E te prender junto aos destroços

Que existem no fundo de mim

Mas tu, navegante sem rumo

Te perdes em minha imensidão

E ampla como sou, te perco também

E nada de te encontrar

Entre as ilhas que fui formando

Enquanto seguias sereias

E me iludia achando que por imergires em mim

Algum dia te consumiria e te decomporia e te misturaria por fim

Em meu líquido querer, em meu salgado chorar

Em meu porto de faz-de-conta-que-sei-amar.

24.9.04

Meio Lá, Pouco Cá

Não tenho estado muito aqui -- "aqui", dentro de mim e abraçada às letras que eu junto para contar sobre interiores e exteriores do meu mundinho.

Quando penso que finalmente dedicarei um tempo para minhas ficções sempre inacabadas -- sina de escritora que precisa sobreviver com algo mais "produtivo" que criar --, sempre surgem toneladas de traduções para fazer. Como só eu e Deus sabemos quanto preciso mesmo de uma chuva de traduções, preciso sorrir e me desculpar comigo mesma, com meus personagens e com meus amigos gentilíssimos que vêm ao meu blog conferir se andei pairando um pouquinho acima do chão.

Não.

Há dias finquei o pé na realidade e, feliz ou infelizmente, dela não poderei sair tão cedo, exceto no sentido de que, ao traduzir "A Place of Execution", um ótimo livro de suspense-quase-terror, eu posso ao menos divertir-me com um pouquinho da criação da autora excelente (Val McDermid).

De resto, peço desculpas pela ausência involuntária, mas a partir de segunda voltarei a pegar no pesado em um outro projeto de tradução que me consumirá praticamente todo o tempo e energia. E aí, se a Lei de Murphy não vigorar novamente e tudo der certo, estarei ocupada, com os pés e cabeça firmemente atados ao lado prático da vida, e terei de suportar a saudade que (sempre) sinto de vocês.

Em tempo: mesmo na pressa, posso ler e-mails. Escrevam para daybat@translate.com.br. Não me abandonem.

Ernesto, muso, mil perdões -- a coisa anda impossível por aqui, mas não esqueci nada, viu?

Antonio Jr., eu topo. Vamos ver os detalhes outra hora.

K., também sinto saudade (e curiosidade para saber tuas notícias).

E é isso.

Beijos.



21.9.04

P.S. para o Post Abaixo

Acredito realmente que ninguém se apaixona sem estar preparado por uma espécie de mudança na química cerebral... Não é a pessoa que traz a paixão. A paixão é que traz a pessoa.

Sei, sei, sei -- isso é muito pouco romântico.

Mas será que não é de dentro para fora o modo certo de se apaixonar, mesmo?

... Sei. Sei. Sei. Se o Brad Pitt passasse por mim, sempre seria a hora e viria de fora para dentro...

... Ainda assim, tirando esta exceção, creio nos hormônios-todo-poderosos, creio na força da neuroquímica, creio no romantismo do cio feminino e creio na mágica que tudo isso causa, transformando meu cérebro em uma sopa de emoções vibrantes, que alimenta mais que dez anos passados em regime de afetos insossos.



Pronta

Algo anuncia-se.

De repente, escuto a incomensuravelmente bela voz de Julie Andrews cantando "The Sound of Music" e lá vou eu também voando pelos espaços abertos, montanhas... Pelo céu azul da abertura do filme. Vou com a canção e vôo. E no fim, uma vontade de chorar depois do agudo de pássaro de La Andrews.

Depois, ainda, ouço o tema (belíssimo) de "O Rei e Eu" e me vejo dançando, valsando também com essa figura mais imaginada que presente, mais idealizada que real que parece ser o transmissor do vírus que me atingiu.

E então percebo:

Estou pronta para me apaixonar.

O que é essa vontade de rir? De querer acordar logo? De não dormir? De me perceber outra e a mesma, de me ver como aquela que prefiro ser e sou quando consigo me olhar de perto?

O que é a sensação de que sou bonita? E a enxurrada de estados térmicos alternados e consciência desperta para o que não andava percebendo, tão estupidificada pelo quotidiano morno apenas?

Algo ferve.

Borbulha e queima.

É paixão. Já é algo.

Parece que encontrei a chave perdida. Não do portal do Amor. Mas do portão dourado da paixão, por onde entram os poetas e os desvairados.

Me ajuda a abrir?

20.9.04

Resposta ao fanatismo

... Não...

Não quero criticar teu deus, porque não quero brigar com o meu...

Deixo-te com tuas crenças e permito que vivas hoje como dois mil anos atrás, com tua involução cerebral e teus grilhões da fé cega no teu deus inventado.

Dou liberdade para exerceres teus preconceitos. Sou mesmo uma criatura libertina, fumante, fanática por trabalho, que nunca oficializou nada perante um padre e não quer saber de olhar os lírios do campo e prefere suar e ganhar o pão com o próprio sangue -- ainda que seja aos domingos.

Sim, espero que sejas feliz, como sempre esperei, quando viajava três dias de ônibus para ir te ver duas vezes por ano, só para garantir que aquela menininha, filha do meu pai com outra mulher, pudesse ter uma visão sadia da vida.

Te perdôo por não perdoares minha falta de fé no teu deus.

Não tenho medo do inferno.

Volta e meia ponho um pé dentro dele, rejeitada por tua fé em tudo que te afasta de mim.

Acostumei-me a vislumbrá-lo.

Mas aqui, em minha bolha protegida da ignorância, vacinada contra lavagens cerebrais e receptiva à vida, sei que não erro por ainda te amar.

Meu Deus estava dormindo, assim como eu, quando escapaste e fugiste com teus olhos tão verdes e teu rosto semelhante ao meu e cruzaste aquela fronteira entre a razão e a insanidade.



17.9.04

Comandos Encantados

Muitos anos atrás, li um conto de Stephen King em que o personagem comprava seu primeiro computador, encantava-se com o processador de texto e descobria, ao apertar delete, que aquilo em que estava pensando simplesmente desaparecia.

Delete, e lá se ia a sogra.

Delete, e o cachorro parava de latir, desaparecendo no ar.

Pois eu estou querendo de Deus um processador de realidade novo. Neste, com o pensamento fixo naquilo que desejo, inaugurarei a tecla Insert trazendo de volta meu pai, saudável e com faces rosadas, pernas fortes e voz firme.

Insert, e meu irmão jamais terá saído de moto com seu capacete escuro numa noite de chuva para perder-se na curva debaixo de um carro e nunca mais voltar.

Insert, e minha irmã aparecerá na minha frente, vinda de onde quer que esteja se escondendo.

Insert, e tudo o que foi deletado pela vida será resinserido nela.

Enter.

E tu também entrarás por esta mesma porta e te encontrarei sentado às minhas costas, rindo de mim com olhos brilhantes de lágrimas, no instante em que um arrepio percorreu minha coluna e me voltei porque senti que era observada.

Backspace, e o beijo que acabara recomeça.

Sleep.

Wake Up.

E um dia, End.

Também para mim, um End. Nada mais de Page Down ou Page Up. Nada mais de prender as maiúsculas com o Caps Lock para berrar teu nome aos ventos lançados pela ventoínha... Nada mais de dar um F1 pedindo Ajuda. Nada mais de Pause ou de Break.

Apenas um End. Singelo. Despretensioso. Sem nenhum Contrl.





No gancho

Eu odeio telefones.

Essa é uma das minhas muitas esquisitices e acho que a maior.

Eu realmente odeio telefones e sua única vantagem na minha vida é permitir o acesso à internet.

Não atendo, se puder evitar. Peço aos amigos que escrevam, se possível, porque não serão atendidos (muito provavelmente) ou serão, mas não serei eu falando (será uma tonta ansiosa -- sinto-me idiota falando ao telefone, inexplicavelmente, e o eco da minha voz, às vezes, só contribui para que eu me pergunte como alguém suporta me ouvir, lá do outro lado).

Telefone, para mim, é para marcar consulta com médico, avisar que chegou serviço, avisar que chegarei atrasada (raríssimo) ou perguntar se minha pequena está bem, quando passa mais de dois dias com seu pai (e mesmo assim, só cinco minutos, no máximo -- quando ela voltar, me contará tudo).

Acho a maior falta de educação ligar para alguém e alugar seu tempo e atenção, paralisar sua vida inteira prendendo-a junto a um aparelho.

Se pudesse, abolia de vez o telefone na minha vida (tenho um celular que não uso, um telefone que não atendo, um viva-voz que não consegue me dar a ilusão de que estou com a pessoa ao lado, uma secretária eletrônica que esqueço de ligar).

Acho imensamente grosseiro quando me ligam e iniciam a conversa com algo como: "E aí?..." (E aí que as reticências se prolongam até o infinito e minha paciência já desaparece nos primeiros cinco segundos. Se não é para dizer algo importante, para que ligar?).

O telefonema ideal, para mim, é mais ou menos assim:

-- Oi. Sinto tua falta.

-- Eu também. Quando nos vemos?

-- Amanhã para mim está bem.

-- Ótimo, então. Combinado.

Pronto. Fácil. Indolor. Podemos continuar vivendo.

Quando o telefone toca, meus nervos grudam-se no teto e custam a descer de lá. Mesmo tendo me aprimorado na arte do corte ao longo dos anos, alguns chatos persistem no joguinho de matar minutos intermináveis de minha existência não dizendo nada ao telefone.

Sou tagarela. Loquaz. Vivaz. Esperta. Sedenta de contato.

Mas ao vivo.

E por escrito, melhor ainda.

Se pudesse, tornava a linguagem escrita a única forma de comunicação possível no universo (seria permitido falar apenas nos filmes, no teatro e na música -- e ao fazer amor).

Quando troco correspondência, tenho tempo de pensar. Consigo sentir melhor a outra pessoa pelas entrelinhas, errinhos, deslizes, matizes e cores de sua linguagem escrita. Consigo raciocinar melhor quando escrevo -- direto, sem rascunho e sem revisão.

Com a linguagem escrita, não há mal-entendidos. Nem chance para, depois, dizer que não se disse algo.

Leio e-mails quando quero, respondo quando posso. Eles não me perturbam -- ao contrário, adoro a liberdade de responder só a quem se quer, quando se quer, como se quer.

Não me liguem.

Escrevam-me. Toneladas de palavras, sempre. Apareçam, falem olhando no meu olho, pegando na minha mão. Mas nunca esperem mais que o puramente convencional, se conseguirem me pegar distraída e eu atender uma ligação.

(A seguir, acho que falarei da segunda coisa que mais detesto no dia-a-dia -- pessoas pessimistas e mal-humoradas, estraga-prazeres, azarados por natureza, bolas-murchas e pessoas-marrons -- e se hoje pareço azeda também, é só porque... bom, atendi ou dei telefonemas demais, para o meu gosto).



14.9.04

Cala-te, Mente!



Tenho inveja do silêncio mental de outros.

Minha mente não aprendeu a calar-se. Nunca se aquieta, jamais cede espaço à trilha vazia (que certamente deve haver, em algum lugar), está sempre abarrotada de idéias simultâneas, umas amontoando-se às outras, brigando entre si, empilhando-se e empurrando-se, querendo aparecer e me fazer abraçá-las.

Tenho muita inveja daqueles que mantêm um só pensamento em suas mentes ou até nenhum (como tanta gente que conheço). Queria esse vazio, às vezes, principalmente naquelas noites em que estive criando minhas fantasias de ficção e, ao ir para a cama, pareço ter uma lâmpada brilhante acesa bem no centro de minha testa, por dentro, mesmo quando fecho os olhos. A lâmpada não se apaga e traz sob sua claridade ainda mais idéias, ainda mais fiapos de criações, mesmo quando já me despedi da ficção e de qualquer coisa parecida com inventividade naquele dia.

Invejo, portanto, as vaquinhas plácidas, os cordeirinhos dóceis, os simplórios com suas vagas noções de nada, os coitados com seus fluxos desfiados de pensamentos incoerentes e frouxos.

Cansa, pensar dez idéias ao mesmo tempo, o tempo todo.

Cansa, ser "elétrica", como um amigo querido me considera.

(E só recentemente descobri que tagarelice e essa sensação de multidão cerebral também são considerados como hiperatividade. Não há eletricidade nisso, Paulo. Há, sim, uma Babel que às vezes ameaça desmoronar).

12.9.04

Cara, como ele escreve!! (Apresentando Antônio Jr.)

Recebo, do nada, um texto de quem nunca havia ouvido falar. Não sei de onde ele tirou meu nome -- nem ele mesmo sabe --, mas agradeço à Sorte, ou Destino, ou Acaso ou às listas de discussão (hehehe).

Quando vejo o e-mail com anexo de foto e mais um texto enorme, penso: "Ih, outro." Isso porque, como qualquer pessoa que escreve como amador mas leva isso a sério, volta e meia (duas voltas seria mais certo) recebo coisas gratuitas, para ler apenas, ou para avaliar.

Tenho a sorte de ter amigos que escrevem muitíssimo bem e cujo talento só não invejo mais porque meu "estilo" (se há um) é diferente e, portanto, eu não teria muito o que fazer com o estilo desses gurus.

Então começo a ler.

Sinto-me chocada já no primeiro parágrafo. Largo o texto. Dez minutos depois me vejo forçada a retomá-lo e sorvo de uma só vez esse hálito de verdadeiro literato.

Então exclamo, como uma patricinha deslumbrada (quando não sou nem uma, nem outra): "Cara, como ele escreve!!"

Parece que Antônio Jr. não precisaria ser apresentado por mim (tem livros publicados, é jornalista), mas para os que, como eu, não o conhecem, aí vai uma provinha, e o link sob o texto (obs. - Os acentos parecem ser um problema no teclado que ele usa na Espanha):



"Vê-lo não é um espetáculo divertido. A julgar pelas circunstâncias, está há uma ou duas horas atado a uma pequena e grossa oliveira, nu, o saco cortado e enfiado goela adentro. O sangue cor de vinho escorre por suas pernas fortes e sem pelos, sugado pela terra àspera. Os olhos grandes, opacos, bem abertos, fixam o nada, tomados por um susto dos diabos. Tem enormes orelhas e olhos negros, e parece tao inocente como um pequeno animal dos bosques. Nenhuma documentaçao, roupas ou qualquer objeto que o identifique. Depois de busca minuciosa, o policial colhe a dois metros do corpo, entre tufos de alfazema, um preservativo utilizado e um anel de prata com a letra M gravada. “É um maldito marroquino sem papéis”, sentencia a autoridade gorda e carrancuda."



"Vinte e quatro horas antes, Mohamed beijou a mae e cada um dos nove irmaos mais novos; e eles, esperançosos, nao choraram. No bote, apertado entre 17 corpos suados e tensos, em pé, buscou o céu oculto pela neblina e a lembrança do avô poeta recitando o épico “A Gata Negra”, que fala da sombria solidao humana. Ele o interpretava magistralmente em celebraçoes públicas e reunioes familiares. Observando olhos, bocas, maos, formas fantasmagóricas que se escondem e se mostram na névoa, comoveu-se com uma mulher de chilaba azul-turqueza e rosto tapado, agarrando-se a uma criança de colo. O seu olhar fulminante escondia um grito. Atravessando o Estreito de Gibraltar habitado por golfinhos e sereias famintas de carne humana, despediu-se da branca Tânger. O perfume particular da cidade cheirava a coisa antiga, confundindo-se com o perfume selvagem e apaixonado da terra cigana."



http://elgitano.blig.ig.com.br/

11.9.04


Me deixa acabar com essa luz, estourar todas as lâmpadas, mudar para onde não haja essa claridade toda, voltar no tempo, estar onde já estive com certeza tantas vezes em outros tempos - outras Dayses, quem sabe Maries, Jacquelines, Giselles, quem sabe que nome, quem sabe que tempo -, mas distante do agora.
Me deixa acender o lampião, a vela grossa sobre a mesa de madeira bruta, o livro quase incompreensível aberto sobre a mesa, exigindo atenção no silêncio completo dos tempos ainda não tão civilizados.
Me deixa, ao ir para o quarto, tirar a anágua, a armação da minha saia, tantos tecidos, nenhuma lingerie, o corpete que esconde minha pele branca que nunca vê o sol porque isso ainda é grosseiro, nesse tempo do passado ao qual voltamos.
Me deixa deitar-me sobre o colchão tão fofo, o travesseiro de penas, os edredons caseiros. Quero essa sensação do algodão, do natural, do aconchego de outrora.
Me deixa despertar com o canto do galo, sentindo o aroma da terra, dos jasmins em flor, até do esterco, da flor de laranjeira, da madeira da minha casa, teu cheiro tão bruto, teu odor de homem rústico, tua pele sem colônia, teu corpo moldado a ferro, a esforço, a trabalho braçal, sem academia, sem hormônios nada naturais.
Preciso soltar meus cabelos, fazê-los tranças, correr no campo, olhar os céus, te dar dez filhos e encher minha vida dessa sensação de vida tão presente nesse nosso tempo que nunca será futuro, se nos prendermos aqui, neste momento suspenso entre o nada e o começo de tudo.

10.9.04

Rapsódia Americana (Kenneth Fearing)

Primeiro, te pões a roer as unhas. Depois, escovas os cabelos outra vez. E depois esperas. E esperas.

(Sabe, dizem que primeiro mentimos. E depois roubamos -- é o que dizem. Dizem que depois, matamos).

Então, a campainha toca. E então Peg aparece. E Bill. E Jane. E Doc.

E primeiro tu falas, e fumas, e escutas as novidades e bebes alguma coisa. Depois, desces as escadas.

E depois tu jantas e vais a um concerto depois, talvez, e depois disso danças e depois voltas para casa e sobes as escadas novamente e novamente te atiras na cama.

Mas antes, Peg argumenta e Doc responde. Antes, tu danças a mesma dança e bebes a mesma bebida que sempre bebeste antes.

E o piano constrói um telhado de notas acima do mundo.

E o saxofone tece um domo de música pelo espaço. E a bateria forma um teto sobre o espaço e tempo e noite.

E depois a conta. E então o cheque. Depois, para casa e para a cama novamente.

Mas primeiro, as escadas.

E, querida, enquanto sobes aquelas escadas, será que ainda te sentes como te sentiste lá?

Sentes outra vez como te sentias pela manhã? E na noite anterior? E na noite antes da noite anterior?

(Dizem, sabe, que primeiro ouvimos vozes. Depois, temos visões -- é o que dizem. Dizem que depois chutamos, berramos e temos acessos de fúria.)

Ou tu pensas: o que é mais uma noite em uma vida inteira feita de noites?

O que é mais uma morte, ou amizade, ou um divórcio, em meio a dois ou três? Ou quatro? Ou cinco?

Um rosto a mais, entre tantos, tantos rostos, uma vida a mais entre tantos milhões de vidas?

Mas primeiro, querida, enquanto sobes e contas os degraus (e a soma é sempre a mesma), será que algum dia, em algum lugar ou em algum momento, chegaste a ter uma idéia diferente?

Será que nasceste apenas para sentir, e fazer e ser o que sentes, fazes e és?

Fearing, Idolatrado



Amo-te com tal ânsia, Fearing, que mais não poderia. Em segundo lugar, em minha vida, só vem o Cole Porter, empatado com o Julio Cortázar, mas em nível mais intelectual, menos pessoal. Choro, a cada poema teu. Quem nunca te conheceu, não sabe o que perdeu.

Te conheci por acaso, ao receber um livrão com os tesouros da poesia americana como prêmio pela participação em uma peça teatral do curso de inglês em que lecionava (eu era a aluna sexy do professor tarado!).

Te encontro hoje na Internet.

É como reencontrar um amor antigo. Sinto saudade de mim quando me apaixonei por ti na primeira vez. Sinto saudade de ti e de tudo que me ensinaste sobre como se enlouquece.

Juro que ainda traduzo American Rhapsody (acho que amanhã).



9.9.04

Incomprável

Com três anos e meio, alguns dias após nossa mudança, ela e eu solitárias, recomeçando tudo, Letícia perguntou-me:

– Mãe, me compra um amigo?

Na época, para ela, comprar-lhe amigos deveria parecer o extremo favor de uma mãe solícita que lhe oferecera meios de suprir carências (micrinho, joguinhos, livrinhos, bichinhos), mas se esquecera de lhe dar a lição mais importante de todas – certas coisas preciosas que não podem ser compradas: inteligência, amor, paz interior e amigos.

Hoje ela já sabe. Mas eu ainda me envergonho.


5.9.04

Thursday, Bloody Thursday



"I can believe the news today

Or I can close my eyes and make it go away"

(Dedicated to those schoolchildren killed in Russia)

4.9.04

Interesseira

Ah, mas claro que ela tem um coração...

De ouro.

Com brilhantes.

Na corrente pendurada no pescoço.

E não o entrega a qualquer um.

Apenas àquele cuja carteira

Contém promessas de transplante

De um coração mais caro para seu peito.



3.9.04

Consolo

Incompetência, é o que sinto, quando me contas que teu amor te deixará e me pedes conselhos.

Amigo, minhas palavras não são aquelas que gostarias de ouvir.

Não sei dizer "coitadinho de ti", ou "mas que horrível alguém fazer isso contigo" ou ainda "ah, isso vai passar logo".

Não sei dizer palavras inúteis.

Então te digo o que talvez não queiras ouvir:

Chora. Chora muito. Chora até não poderes mais. Depois, chora mais um pouco. Sei que te sentirás um pobrezinho, um infeliz, um rejeitado. Sei que te parecerá que nunca mais serás feliz, que jamais outra mulher te despertará tudo o que ainda sentes. Isso, S., é normal.

Deixa as lágrimas rolarem, mas enquanto tua alma está ainda sangrando, tenta mais algumas coisinhas que te pouparão dores maiores:

Perdoa.

A ti mesmo, porque te sentirás culpado porque não pudeste reter o amor -- também é normal sentir-se assim.

A ela, porque ninguém consegue ser feliz eternamente, ninguém consegue marcar o tempo -- de preferência a eternidade -- durante o qual amará. Ela não tem culpa de não te amar mais, nem tu és culpado por continuar amando.

Perdoa, principalmente porque ela te disse agora, e não fará com que te sintas pior ainda com alguém que não te quer e, além disso, te despreza. Isso dói. Amor acabado e dor adiada não combinam. Só arrastam o sofrimento, só prolongam a sensação de que algo que já se partiu continua fragmentando-se em pedacinhos microscópicos, dia após dia, a cada tentativa de reconciliação mal-sucedida, a cada fracasso de ver nos olhos dela o mesmo brilho de antes -- que nem percebeste que havia sumido.

"Isso" passa -- a sensação de que o mundo acabará. Sempre passa.

A boa notícia é que sobreviverás.

A má notícia é que nunca esquecerás. Essas dores deixam sulcos que atravessam a pele, penetram os ossos e varam a alma, deixando-a vulnerável e marcada para sempre.

Quando termina, S., termina. Mas antes do ponto final, sempre há todo o sofrimento indizível de quem ama e se sente órfão, perdido no mundo, tolo, patético, uma vítima, um trapo. Não poderás te recuperar se não te sentires assim. Vai. Berra. Te atira no chão. Faz tragédia, se quiseres. Quem já amou e perdeu o amado entenderá.

Claro -- sempre poderás recorrer a mecanismos inúteis de compensação -- comer, fumar, dormir e colocar panos quentes, iludir-te que há chance, e talvez haja mesmo (que sei eu?) -- mas o melhor, na opinião de quem passou por isso e levou uns três anos para simplesmente perceber que ainda existia (depois desse tipo de dor sempre precisamos nos reconstruir), é que deves assumir teu sofrimento, de peito aberto. Sem baixar a cabeça. Sem tapar os olhos. Sem fechar os ouvidos para as palavras que não queres ouvir.

Deixa sangrar.

Depois, lembra que tens valor. Que nesse mundão pode haver uma, duas, talvez até três pessoas capazes de fazer teu coração ressuscitar -- isso parece horrível de ouvir neste momento, mas é verdade. Não digo que será igual ao amor de agora, nem melhor, nem pior. Apenas diferente.

Desculpa, S., isso é tudo o que tenho a te dizer, além de lembrar que tens uma amiga para aparar tuas lágrimas. Sempre.

2.9.04

Dúvida

Quando estou off-line, existo?

Existo para ti?

Ou meus anseios, delírios, pirações,

Minhas posições

Minhas áreas alagadas,

Lágrimas salgadas,

Mãos de pedinte,

Voz imaginária

Súplica por ouvinte

Passam calados,

No outro lado da tua realidade

E sou como a borboleta no meio da floresta,

Ignorada, invisível, inexistente?

Para o caso de duvidares se existo

E para o caso de eu mesma não saber ao certo,

Faz uma reza forte, chamado, invocação

Que eu, fantasma, acho que apareço

E te agradeço, por me ver ao teu chamado

E perceber que, sim -- parece que me habito

Embora não habite em ninguém mais, às vezes.