25.4.07

Incongruente

Com um suspiro, deito às 4 para despertar às 7 e torço a rótula do joelho ao levantar.
Meia hora depois, aonde foi o tempo, tanto a fazer e as expectativas todas de que hoje sim, vai ser um grande dia -- e mais lindo que esse céu cinza-chumbo e o vento geladinho é minha alma que fica cantando e rindo ao ler o jornal onde hoje não, nada de crimes. Fico sabendo que nos quartéis serviam coxas e asas de galinha e perguntavam: "Vai decolar ou quer o trem de pouso?"
Café, rua.
E eu nem sei o que vestir, nunca.
E eu nem sei como olhar nos olhos das pessoas formais, tão normais, e preciso conferir o que é que se usa quando se é entrevistado para ver se aceitam nossa filha numa escola melhor. Como é que me visto para ir a uma escola melhor se sou "só" mãe, tradutora, pretendente tola a escritora, se por dentro me visto tantas vezes de tanta coisa diferente e por fora, sei lá, nunca tenho idéia se estou bem. Surpreendo-me porque pareço estar mais bem vestida do que a média das mulheres que vejo lá (mas decido que hoje só vieram as mal vestidas, de modo que eu estar bem nem é vantagem) -- e ainda assim, não estou à vontade nunca, mesmo sabendo que ninguém me olha. Eu não chamo a atenção (e uma hora depois é isso que me entristece, quando pouco antes me alegrou porque, pelo menos, me ajusto à multidão, não sou um absurdo ambulante -- externamente, ao menos).
Eu não chamo mais a atenção.
Suspiro.
E mais um suspiro.
Eu acho que não, pelo menos.
Incongruente, passo duas horas deprimidíssima. Eu sou a palhaça que tem um sonho. Um não. Talvez uns três ou quatro, dois deles grandiosos, dois nem tanto assim. E no entanto, Sísifo sempre rola pra baixo com sua pedra, de modo que qualquer sonho é mais ou menos em vão.
(enquanto isso, vou vivendo entre o colapso e o êxtase)
E rio novamente quando alguém me chama a atenção contando que nesse exato momento tem alguém muito mais triste que eu. E com motivos.
Decido que sou feliz.
Mas o telefonema não vem.
Entretanto, aquela voz (Denise!) que tento recapturar da adolescência fala direto no meu ouvido, no telefonema após tantos anos e já de novo sou -- feliz.
Muito feliz.
Uma privilegiada, talentosa, cheia de encantos.
Talvez daqui a pouco eu-boneca-de-pano me deite trapo. E acorde princesa.
Já nem sei.
Chego a pensar que sou bipolar.
(será que existe algo como alguém tri ou quadripolar? Rá, tá vendo como sou incongruente, pra não dizer burra?)
Vou acabar me acostumando. Se é verdade que piscianos são influenciados pelo cosmos, com essa loucura que anda no mundo também estamos ficando loucas.
Tá explicado, enfim.

Com endereço certo



"In Your Eyes" - Peter Gabriel

love I get so lost, sometimes
days pass and this emptiness fills my heart
when I want to run away
I drive off in my car
but whichever way I go
I come back to the place you are

all my instincts, they return
and the grand facade, so soon will burn
without a noise, without my pride
I reach out from the inside

in your eyes
the light the heat
in your eyes
I am complete
in your eyes
I see the doorway to a thousand churches
in your eyes
the resolution of all the fruitless searches
in your eyes
I see the light and the heat
in your eyes
oh, I want to be that complete
I want to touch the light
the heat I see in your eyes

love, I don't like to see so much pain
so much wasted and this moment keeps slipping away
I get so tired of working so hard for our survival
I look to the time with you to keep me awake and alive

and all my instincts, they return
and the grand facade, so soon will burn
without a noise, without my pride
I reach out from the inside

in your eyes
the light the heat
in your eyes
I am complete
in your eyes
I see the doorway to a thousand churches
in your eyes
the resolution of all the fruitless searches
in your eyes
I see the light and the heat
in your eyes
oh, I want to be that complete
I want to touch the light,
the heat I see in your eyes
in your eyes in your eyes
in your eyes in your eyes
in your eyes in your eyes

16.4.07

Era tudo tão branco e gelo, B. (será que ousarei um dia escrever teu nome inteiro? Nada me impede -- mas nada me impele).

Se eu ousasse mergulhar no meu inconsciente recolhendo pedacinhos de símbolos perdidos na minha forçada racionalidade, poderia dizer-te que me descobri frígida -- ora, tanto gelo, tanto frio e tanta neve... Porém, como poderia o inconsciente ser traído por minha declaração no teu ouvido?

No sonho, eu trabalhava em uma emissora de TV. Tudo muito branco ou cor de gelo sujo. E lá fora, tanta chuva.

No sonho, retirei-me para uma sala de fumantes, igualmente branca, com mesas gelo-sujo, onde estavam três mulheres descoradas e desbotadas, que mal me notaram.

Parei-me a olhar pela janela enorme de vidro, vendo que agora nevava, forte, grossos flocos caindo pesados no chão branco sujo.

E vieste então.

De repente, estavas ali, tu, a única coisa colorida, quente e macia, e me prendias no conforto acolhedor do teu abraço longo de corpos unidos inteiros. Um abraço desses de ficar a vida toda.

E me apertavas e me dizias em tom urgente no ouvido:

-- Me dá um motivo.

E eu te dizia, em tom insistente:

-- Eu sempre fervi. Eu sempre fervi!

Ah, B., pudesse esse ser um motivo válido para esqueceres que procuras uma praia onde o sol sempre brilhe... Pudesse eu substituir esse calor que buscas pela febre que sempre houve em mim... Pudesses tu ser esse calor e minha única cor, num mundo sujo (pelo menos, branco...)...

Quase nem ousei confessar-te meu sonho, porque a modéstia sempre me impediu de te dizer que ainda tenho febre. A humildade dos meus sentimentos não colaborou para que eu te exigisse, te puxasse e te pusesse concreto nos meus braços, não etéreo e onírico.

Enquanto o gelo e o branco sujo varrem minhas noites, tu procuras a praia, numa busca incansável do paraíso onde talvez tudo ferva.

Mas não eu.

Ali.

Era só isso o que meu tantinho de coragem queria te falar. Que ontem à noite me abraçaste. E que entre os abraços últimos, nenhum teu foi o primeiro. E mesmo assim, me confortas, porque te sinto, te cheiro, te pressinto sempre em mim, com a saudade que temos de quem não vemos há vidas inteiras. E que talvez só reencontremos em outras.