5.4.06


Quatorze anos atrás, foste embora.
Domingo, chovia.
Teu capacete não te deixou ver a carroça na escuridão, sob a chuva fina.
Até hoje não sabemos que carro te encontrou no meio da pista, quando caíste da moto ao te desviares da carroça (não quisemos saber - o motorista não teve culpa).
Quatorze anos atrás passei o domingo contigo. Isso nunca acontecera, tu e eu em um domingo inteiro juntos. Eram raras as oportunidades de estarmos juntos e durante anos, discutíamos brigávamos, nesses encontros em família.
Agora, porém, era a fase em que nos tornávamos realmente amigos. Irmãos de alma e carne, tão semelhantes nas crenças, nos valores, nas decepções, nas esperanças, nos medos. Meses antes, quando começaram os pesadelos dos quais eu despertava chorando, começamos a admitir nosso amor um pelo outro (se de longe só falavas bem de mim para teus conhecidos, de perto só discordávamos -- mas então, quatro ou cinco meses antes daquele domingo, algo mudou e vimos um ao outro como sempre deveríamos ter visto, com amor raro e precioso.)
Naquele dia, rumo ao cinema, te olhei diferente.
Perguntaste "O que estás olhando, bruxa?" (eu sorri -- desde a infância eu era a "bruxa", para ti, e sabia que isso tinha muito de carinho)
Perguntaste mais duas vezes, na volta do cinema ("O Príncipe das Marés", tua escolha - peguei horror desse filme). Na última, respondi, com ternura: "Não posso te olhar?". Te amava mais, naquele momento e, então, não sabia o porquê.
Não me despedi de ti da forma habitual. Em vez de olhar até entrares no elevador; em vez de correr à sacada para te ver subindo na moto, onze andares abaixo; em vez de sentir o coração partido ao te ver ir embora... Em vez disso apenas te disse "tchau" depois do beijinho no rosto. Fechei a porta.
Te encontrei novamente quatro horas depois, mas já não viste.
Quando ligaram dizendo que havias sofrido um acidente, ainda chovia. E eu sabia que havia te perdido.
Não tive pressa em ir ao teu encontro.
Não havia mais pressa.
Nossa mãe não se lembra daquele dia (a dor inimaginável apagou a memória).
Lembro de todos os segundos.
Lembro que fui te encontrar, solitário e deitado, apenas um tênue fiozinho de sangue no cantinho de uma das unhas. Inteirinho.
E não estavas mais ali.
Nunca me perguntei por que me ofereci para fazer o que só havia visto em filmes: ir te ver, te reconhecer, saber se era tu mesmo, irmão, parado ali e incrivelmente seco com tuas roupas, embora tudo tivesse ocorrido na chuva. Nunca entendi isso. Um erro de continuidade, nesse filme maluco que pensamos ser realidade?
Partiste naquele dia e a partir dali nunca mais tive a ilusão de eternidade. Nunca mais tive os pesadelos dos quais acordava chorando quase todas as noites. Agora eu sabia por que alguém me avisava, e qual era o aviso, por que alguém me preparava e por que a mim.
Sabes que te amei. Sabes que és padrinho de minha filha, aí onde estás, ainda que não a tenhas conhecido.
Sabes que nunca, nunca, nunca te esquecemos.
E sabemos que estás bem.
Sempre dói, irmão, como se fosse ontem.
Sempre doerá.
E ao mesmo tempo, meu lindo, valente, querido, honesto, forte e amado Edinho, somos felizes porque estiveste conosco.
Tua irmã bruxa um dia contará aos outros como também sabias que era tua hora (eu sabia, mas não reconheci naquele instante).
Mas ainda não há coragem para isso.
Fica com Deus, com o pai, com nossa vó tão exótica e com teus amigos que já partiram.
Um dia nos vemos.

5 comentários:

Anônimo disse...

um beijo, amiga. grande.

Anônimo disse...

Lindo, terno, docemente amrgo,
mas com uma esperança que nos perfuma a alma

Ana Julia

Anônimo disse...

Ao ler este post, recordei... Arthur Miller, convertido à doutrina budista, ou simpatizante, contando o seu "sofrimento": não porque para aumentá-loou para fazer sofrer terceiros, mas: se possível, para ajudar alguém. ...Recordo... a intenção, parecida, de Robert Antelm,ex prisioneiro sobrevivente de campos de concentração nazi, no livro a ESPÉCIE HUMANA, (prefaciado por Edgar Morin): onde ele relata o que sofreu e, no entanto, não escreveu para "condenar" ninguém em particular....


Posso dizer que: se há livros que mudaram qualquer coisa em mim: esse é um deles e recordo aqueles relatos intimamente, por vezes, no meu dia-a-dia normal.

Acho importante partilhar o sofrimento, ou outros sentimentos : para lembrar o quanto somos humanos ...e que a vida não é apenas sorrisos bonitos e simpatias forçadas; toda saudável e sorridente , como um bonito anúncio publicitário.

Anônimo disse...

Eu, de novo:




uma correcção: Henry Miller e não Arthur Miller, in O CITADOR:http://citador.weblog.com.pt/arquivo/207815.html

"Em tempos pensei que tinha sido ferido como homem algum jamais o fora. Por sentir isso, jurei escrever este livro. Mas muito antes de começar a escrevê-lo a ferida cicatrizou. Como jurara cumprir a minha tarefa, reabri a horrível ferida. Deixem-me explicar por outras palavras. Talvez ao abrir a ferida, a minha própria ferida, tenha fechado outras feridas, feridas de outras pessoas. Morre qualquer coisa, floresce qualquer coisa. Sofrer na ignorância é horrível. Sofrer deliberadamente, para compreender a natureza do sofrimento e aboli-lo para sempre, é muito diferente. O Buda, como sabemos, teve toda a vida um pensamento fixo no espírito: eliminar o sofrimento humano.
Sofrer é desnecessário. Mas temos de sofrer para compreender que é assim.

Além disso, é só então que o verdadeiro significado do sofrimento humano se torna claro. No derradeiro momento desesperado - quando não podemos sofrer mais! - acontece qualquer coisa que tem a natureza de um milagre. A grande ferida aberta pela qual se escoava o sangue da vida fecha-se, o organismo desabrocha como uma rosa. Somos «livres», finalmente (...). Não são as lágrimas que mantêm viva a árvore da vida, mas sim o conhecimento de que a liberdade é real e eterna."

Henry Miller, in 'Plexus', in O CITADOR:http://citador.weblog.com.pt/arquivo/207815.html

Anônimo disse...

http://www.citador.pt/