8.12.07

O Exercício de Se Superar




Minha bela,

Lembras tu na tua gaiola, essa bendita exposição de matemática da tua escola, em novembro?

Lembras que toda a trabalheira começou uns bons 10 dias antes, com um grupo de 4, que se tornou um grupo de 2, um coleguinha e tu?

Deveriam montar um jogo de matemática, com regras, 50 equações, peças, tabuleiro, etc. Deveriam trabalhar em dupla. Deveriam fazer tudo juntos.

Mas no primeiro encontro, teu colega não apareceu. No segundo, arranjou uma desculpa e outro colega te ajudou a criar aquele mundo de equações. No último encontro, aí mesmo, nessa "gaiola" onde deveria estar o trabalho da dupla, teu colega desperdiçou todo o material da decoração do estande, estragou tudo e foi-se embora, com mais uma desculpa, te deixando desesperada, na véspera da exposição do teu trabalho. Lembro de ti, chegando em casa de táxi (o colégio, tão longe pra quem não tem carro...), com uma fita adesiva grudada na testa, onde tu mesma havias escrito: "Eu sou uma Idiota". Lembro que eu ri, te puxando com carinho de dentro do táxi, dizendo "Vem cá, sua boba, a gente dá um jeito".

Minha belinha, lembras de nós, na noite anterior à manhã dessa exposição, indo à livraria comprar tudo de novo, todo o material de decoração novamente?

Lembras de nós, acordando cedinho, nos enfiando num táxi, chegando às 8 na escola e arrumando em 10 minutos o que achavas que não conseguiríamos arrumar em uma hora?

Lembras, principalmente, minha linda, de como os outros grupos, todos eles, tinham 3 ou 4 alunos se revezando para cuidar de seus estandes com trabalhos, enquanto o grupo de tu sozinha não podia sentar, não podia comer, não podia beber, não podia ir ao banheiro e não podia nada, por estares só?

Eu lembro de olhar para ti, sozinha ali no teu estande, solitária, enquanto nos outros grupos todos riam, conversavam, passavam o tempo e mais estavam na rua que dentro do ginásio, onde deveriam estar. Lembro de ter pensado: "Mas por que minha filha parece sempre tão sozinha?" Então uma coleguinha de outro grupo veio, desabafou a mágoa por também ter feito tudo sozinha em seu grupo, e lembro que tu comentaste que outros discriminavam a menininha linda, inventando coisas sobre ela. Lembro que te pedi para não fazeres isso, nem pensares nisso, porque é uma palavra aqui, outra ali, que cria o preconceito e torna as pessoas solitárias. Às vezes, apenas por serem melhores que a média. Mais sérias. Mais interessadas em fazer a coisa certa.
Lembras das dores nas pernas, três horas inteiras parada ali, de pé? Lembras da fome? Lembras do sono? Lembras da minha oferta para cuidar de tudo para poderes caminhar 10 minutos na rua e ires ao banheiro, e tu me dizendo "Não, mãe, é *meu* trabalho, eu é que preciso cuidar!"

Lembras? ... da ansiedade quando procuramos esse novo colégio, agora particular, deixando para trás a escola pública onde eras maltratada por seres boa aluna, onde eras chamada de "gorda", onde eras tratada como menino, por andares com os meninos, já que as meninas conseguiam ser mais obcenas ainda que os garotos? ... da alegria, ao comprarmos todo o teu material (pela segunda vez no mesmo ano), o uniforme, o tênis que querias? ... do primeiro dia de aula, e tu exclamando, depois de mais tantos e tantos dias, "Eu AMO o meu colégio novo!"... da tua percepção de que não é a classe social que torna adolescentes grosseiros e precocemente interessados por sexo?... da tua descoberta de que, onde menos deveria haver bullying, entre filhos de famílias teoricamente mais cultas, mais ele ocorre?

Lembras do nosso pavor, quando percebeste que colégio particular era outro mundo, e que era como se nunca tivesses estudado geografia, inglês, história, etc., já que tudo era novo e não sabias nada do que aprendiam na nova escola? Lembras que chegamos a nos conformar porque era quase certo que serias reprovada, já que no primeiro trimestre tuas notas eram vergonhosas, pelo choque do impacto entre ensino público e ensino particular?

Minha flor, valeu a pena.

Valeu a pena transferir-te de escola em pleno maio, ser vista como "estrangeira" no colégio novo, decepcionar-te e fazeres tudo, tudinho por ti mesma, sozinha, apesar da dor e da desilusão com os companheiros... Valeu a pena, porque os professores te reconheceram. Te conheceram, em tuas zangas iradas, em tuas reclamações contra a injustiça, em tua determinação em ir até o fim, sempre, por um pontinho na nota, por um visto num trabalho, quando bem poderias ter jogado a culpa em outro, simplesmente, e não te importado, já que os outros não se importavam.

Valeu a pena, quando tu gritaste no celular, assim que terminou o último dia de aula, ante-ontem: "Mãããããeeee, eu passei por méééédia!!!"

Valeu a pena o abraço feliz-feliz-feliz que nos demos, quando chegaste em casa, os beijos, o senso de dever cumprido.

Acho que depois de ante-ontem tu sabes:

És capaz de superar qualquer coisa. És forte, honrada, valente, esforçada e muito, muito, muito inteligente, saltando de notas abaixo de crítica para notas máximas em todas as matérias, ficando entre os melhores da classe. Tu és capaz de perdoar colegas que te fizeram de otária já no primeiro mês, marcando reuniões na escola para um trabalho e te deixando à espera a tarde inteira, rindo de ti no dia seguinte, porque esperaste em vão. E tudo porque achavam que, sendo aluna nova no colégio, tu não tinhas o direito de mandá-las trabalhar, em vez de perderem tempo.

Minha anja, se saíste parecida com tua mãe em algumas coisas, agradeço a Deus. Somos mesmo intolerantes com o "jeitinho fácil", o "fazer nas coxas", o "não dá nada" e o "depois eu dou um jeito". Mas o mérito, ainda assim, é TEU. TEU, sempre, por seres alguém que veio ao mundo para, como tu dizes "ver a vida como ela é".

Tu és um sonho. E tua carinha triste na foto, lá em cima, é só pra não esquecermos que, no fim, tu riste. E muito. E com vontade. E continuas rindo, alegre, por mais esta vitória.

Te amo, Letícia.


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