5.6.05

Uma Conversa

Ele chega atrasado e comento:

– Que bom que nunca vou casar contigo, Fernandinho, porque eu teria de me atrasar duas horas para ainda te esperar mais uma... estás sempre atrasado...

Zanzamos pelo shopping, cada um de nós recolhendo fios mentais de conversas inacabadas por e-mail ou telefone, muita coisa para ser retomada, pouco tempo para longas conversas significativas.

Pergunto como está seu coração.

Está vazio.

O meu também, eu digo.

Ele menciona um rol de interessadas virtuais que, quando vistas em carne e osso deixam a desejar.

Ele me responde, quando lhe pergunto por que:

– Uma mulher precisa ter a capacidade de pelo menos preencher uma hora de conversa interessante antes de ir para a cama e meia hora depois da cama.

Fico pensando...

– Além disso – ele continua –, não pode ser muito gorda nem muito magra. Deve fazer algo por sua vida...

Continuo pensando. Não lhe pergunto se eu preencheria os requisitos. Sei que sim.

Eu não preciso perguntar-lhe. E ele não comenta quando eu lhe conto que também tenho alguns “pretendentes” contados nos dedos, mas que uma vez que não transo (mais) com amigos e nem com amores do passado que querem jantar comigo e me jantar depois que casaram com outras (e quando supostamente eram apaixonados por mim), a situação fica difícil. Meu amigo e eu somos ocupados e não temos todo um mercado de corações livres de onde escolher um.

Ele não comenta, mas sabe que preencheria muitos dos meus requisitos.

Acontece que dos homens que mais admirei na vida, poucos (nenhum?) habitaram meu corpo – apenas minha mente e fantasia. Ele é um dos que ameaçaram entrar por uma porta que nunca se abriu completamente.

Meu amigo e eu chegamos a conclusões semelhantes. Que ele só conhece mulheres que querem se arranjar e que por isso nem começa nada com elas. E que eu não quero me arranjar com ninguém e por isso não começo nada com ninguém, porque não quero compromisso, mas também não quero aventuras.

Em nossas incongruências, meu amigo e eu nos encaixamos. Eu não lhe dou sexo, e ele não me dá romance. Negamo-nos graciosamente o que não seria espontâneo e aceitamos com elegância a honestidade de nossa tentativa de não nos enganarmos mutuamente. Ele nasceu para casar, mas detesta a idéia de que uma mulher o queira já com isso em mente. Eu não nasci para casar, mas detesto a idéia de que um homem não pense em mim como uma parceira em potencial. Sei que nunca serei parceira de ninguém, e aceito minha individualidade excessiva – com alguma dor pelo reconhecimento de minha insubordinação às emoções, mas aceito. Ele não aceita sua solidão, e vive à espera do que eu nunca procurei realmente – algo sólido, estável e tranqüilo.

Ele está atrasado para cumprir sua missão de bom filho, cuidando da mãe doente.

Eu estou com tempo para fazer umas comprinhas e depois rever amigos amados em um restaurante.

Eu o abraço apertado, lhe digo um muito obrigada de coração, e ele sabe por que, mas me diz que não preciso agradecer. Eu sei que não preciso. Ele é meu pai-irmão-conselheiro-amigo, talvez o único homem que sei que não me abandonará. Nunca. Nós não nos abandonaremos porque nunca prometemos nada um ao outro. E por isso mesmo estaremos disponíveis – essa é minha esperança, mais como um wishful thinking que uma certeza.

Naquele abraço eu agradeço por um favor que ele me fez e que naquele dia eu paguei, mas ele sabe que sou grata por muito mais.

Duas pessoas que não tinham por que sequer ter se conhecido. Duas pessoas que não se amariam se tentassem ter um romance. Mas duas pessoas que se amam mesmo assim, acima e além de tempo, espaço e circunstâncias.

Redescubro-me sempre, refletindo-me como um espelho no meu amigo.

Ele vai embora, com pressa.

Eu ando devagar, compro brincos, colar, pulseira, fumo um cigarro na frente do restaurante uruguaio olhando a noite linda e estrelada, morna em pleno junho no Rio Grande do Sul. Sorrio sozinha, ainda com o calor de um afeto real por este anjo em minha vida. Então, discretamente, coloco mais uma gotinha de perfume, piso sobre o cigarro e entro decidida no ambiente iluminado onde sei que verei mais rostos que acendem em mim o prazer de estar viva.

3 comentários:

Anônimo disse...

Bingo!

Anônimo disse...

Daysoca
Li e reli, e no fim estava com lágrimas nos olhos.
Que texto perfeito.
Um beijo grande,
Ale

Anônimo disse...

Concordo - perfeito. Poeticamente, principalmente. Qdo chego da rua sem poesia. Que saco!
É bom ter um amigo assim... E a possibilidade sempre presente, algo que não deixa a rotina chegar.
Que bom que vc tá viva. Que bom é ler algo que sentimos, e não fatos em ordem temporal. Que bom ler sobre a alma humana, sobre a minha na sua. Que maravilhoso é ler sentimento. Obrigada por ter um blog. BEIJO ;)