10.8.05

Diário de Uma Mulher Comum I


Alguém me disse ontem, que sentirá falta da minha cabeça pensante, quando afastei-me justamente por repensar minha participação em uma lista que, supostamente, deveria manter a elite dos profissionais das letras por sentir que simplesmente não me ajusto.

Recordo esse “precisamos de cabeças pensantes como a sua” enquanto junto cocôs de cachorro do meu gramado úmido ainda, cedinho.

Penso nisso enquanto jogo aquela bosta de saco plástico (ou saco plástico de bosta?) na lixeira da calçada, com o cuidado para amarrar bem as três sacolas para que o lixeiro não precise hesitar nem se sujar, ao levá-lo.

Penso nisso enquanto entro, vou até os fundos do meu quintal e observo minha mudinha de árvore – misteriosa, já que não sei o nome e a ganhei de crianças desleixadas cujo clubinho visava justamente cultivar o verde, mas que deixavam as plantinhas morrendo e criando mato no pátio da escola. A arvorezinha perdeu suas poucas folhas e, agora, exibe uma exuberância de novos brotinhos, verdes e tenros, anunciando que vingou. Um dia saberei se a árvore dá fruto ou flor.

Penso nisso enquanto escuto um “replay” dos acontecimentos da CPMI que assisti até meus olhos arderem e até o “Está encerrada a sessão”irritado e impaciente de seu presidente às 2h18m desta madrugada. Penso nisso enquanto sorrio, recordando o “E eu ia fuder minha vida pelo PT?” de um ex-empresário charmoso e salafrário, inconseqüente, que só lembrou da honra da família quando descoberto. O arrependimento dos sacanas nunca vem enquanto roubam, só ao serem flagrados. Mas sua espontaneidade, o “fuder” pelo qual desculpou-se imediatamente e que arrancou um sorriso dos que o inquiriam, me fazem sorrir.

Eu penso nas cabeças pensantes que, aparvalhadas, vêem os ratos todos a correr, esgotos abrindo-se, podridão escorrendo pelas veias deste país.

Cabeça pensante, eu?

Caro João, sou apenas uma tradutora de jeans velho que insiste em usar batom até limpando cocô de cachorro, uma mulher que passou dos quarenta e adora tomar Nescau fervendo com bastante leite Ninho, que pedala sua bicicleta na marcha pesada no delírio de que isso combata um pouco os efeitos das horas-bunda na frente do micro para defender esse mesmo leitinho Ninho da mãe e da filha.

Sou aquela que, após discutir com a filha e a mandar para a escola, chora, chora, chora e se sente miseravelmente coitadinha. Essa mesma que se julga inútil frente aos intelectuais grosseiros de uma lista de tradutores e prefere sair a quebrar as tamancas na cabeça de alguém.

Limpar cocô, sim. Perder a elegância, jamais.

Eis aqui a patética ilusão de uma cabeça pensante, João. E talvez te iludas apenas porque não estás aqui para ver que minha cama ainda está desarrumada e minhas plantas precisam ser regadas, enquanto minhas idéias mal-alinhavadas ocupam grande parte do meu dia sem jamais serem costuradas em definitivo, minhas palavras andam escassas e cada vez uma porção menor delas sai de minha boca. Um dia, se Deus quiser, ficarei muda.

Cabeça pensante, eu?

Em muitos dias, eu acho que já perdi a cabeça.

E se penso, é porque não dá para evitar.

4 comentários:

Anônimo disse...

Que texto. Soberbo! Pensantes são os cães. Beijo!

Anônimo disse...

Então não somos cabeças pensantes, seja lá o que isso venha a significar. Apenas fazemos a tal diferença, querida Dayse, e quando sua árvore frutificar, os frutos dela quero comer, se forem eles de comer. Caso contrário, se você me permitir, farei um exótico arranjo floral com as tais frutas para amenizar nossas dores, as dores do mundo. Já que agora até jurubeba está sendo utilizada para compor arranjos. Beijos, querida.

Anônimo disse...

Retribuindo a visita, mas além disso... Me deliciando com seus instigantes textos. Não deixe a fonte secar, mesmo ocupada com o cocô do cachorro. Ah! eu também adoro Nescau quentinho!

Anônimo disse...

É uma pena, Dayse, você ter saído da lista. Os intelectuais grosseiros ladram, a caravana passa... :-)
Não é fácil manter a linha diante de certas grosserias, mas a grande maioria na lista é de tradutores que te admiram muito. É pena.
Mas nao fique muda, mesmo quando dá vontade de parar de pensar.
Lembro de uma das perguntas 'difíceis' de minha filha, quando tinha uns 9 anos e não conseguia dormir: "Mamãe, como faço para parar de pensar?"
beijocas
Su