22.2.06

Diário de Uma Mulher Comum VIII


“Necessário, somente o necessário,
O extraordinário é demais.
Eu digo, o necessário,
Somente o necessário,
Por isso é que essa vida eu vivo em paz”.

(versão da musiquinha “Bare Necessities” do filme “Mogli”)


Acordo descansada, finalmente, depois de uma maratona de quase um mês trabalhando mais que em toda a minha vida. Nas duas últimas noites eu havia dormido em média 3 horas por noite e, então, esta noite consegui 6 horas de sono profundo, o que é o suficiente para me fazer sentir humana de novo.
Certas coisas viram luxo para um tradutor, seguidamente: banho demorado, refeição sem pressa, cama para dormir decentemente, calorzinho, ver TV, conversar, sair à rua. E ainda tem quem se ofenda quando boto “ocupada, ocupadíssima” no MSN para evitar conversas.
Mas tudo isso compensa. A gente aprende a valorizar pequeníssimas coisas (tipo: levantar para passar um café).
E compensa porque é isso o que se ama. É para pesquisar que nasci. Para aprender. Para produzir. Para traduzir. E para ganhar razoavelmente bem (muito bem, segundo alguns parâmetros, ou nem tanto, segundo outros).
Traduzir é vocação, é aventura. Não há rotina, nem programação, não há como prever o que se fará daqui a dois dias, às vezes nem daqui a duas horas, e é preciso gostar muito de entrar num estado alterado da consciência sem droga nenhuma, apenas adrenalina, que faz com que nem pisquemos na frente da tela e com que, diante da concentração fenomenal, as horas voem.
Dormi como um ser humano normal de ontem para hoje e, ao acordar, percebi que apesar do sofrimento, esse “osso” do meu ofício é exatamente o que eu gosto de roer.
Traduzir não é para os moles de espírito e de corpo. Não é para preguiçosos e desinteressados, nem para aqueles que têm horários fixos. Apesar de não haver programação na vida do tradutor, ele precisa de uma disciplina que poucos têm. Precisa da força espiritual para saber que seu lugar, naquele instante, não é no cinema, não é no show do U2, não é no parque, nem na praia. Para saber que nosso trabalho é útil, que rende frutos (se bem que não o reconhecimento público, já que somos invisíveis para a maioria das pessoas, que sequer percebem que durante o dia inteirinho topam com nosso trabalho em tudo, do instante em que abastecem seus carros até o momento em que ligam a TV à noite para assistir ao noticiário ou a séries americanas).
Traduzir, por incrível que pareça, é um trabalho “braçal” – que o digam meus braços trêmulos, minhas mãos doloridas, pernas e pés de chumbo após tantas horas sentada. Felizmente, não tenho problemas de coluna.
Minha mãe me liga, 8 da noite, com “peninha” de mim. Eu rio, porque se o corpo mal se sustenta de pé, o espírito vai bem, muito obrigada. Nada como encher a mente só com Jogos Olímpicos e a história de seu marketing bem sucedido para esquecer outros incômodos da vida. Digo-lhe que o cansaço é só físico, porque traduzir acende a mente, não cansa. É um trabalho cerebral que vicia.
Algumas pessoas fazem da profissão sua vida. Outras fazem da profissão apenas “trabalho”. Eu tenho profissão, trabalho e vida, tudo junto, com a tradução, e sem ela não encontro minha identidade.
A pressão de traduzir faz com que nos descubramos, sempre, por revelar que somos muito mais fortes do que pensamos, mais resistentes, persistentes, perfecionistas. E quem me vê durante tantas horas quase imóvel olhando para o computador e batucando no teclado nem imagina quantas “viagens” eu fiz, nesse tempo todo: à Antigüidade, a Argos e Olímpia, a países como Grécia, Canadá, Estados Unidos e Japão, aos estádios brilhando de novos a cada edição dos Jogos Olímpicos (atenção: olimpíadas é o período **entre** os Jogos, é um erro chamar os Jogos Olímpicos de “Olimpíadas”, aprendam isso de uma vez por todas), a salas de reunião na Suíça, a mundos que normalmente não procuramos.
Estranhamente, a letra da musiquinha adorável, lá em cima, e a personalidade do Balu, o urso comodista e bon vivant do Mogli, têm tudo a ver comigo, que de comodista e bon vivant não tenho nada. Não invejo o Balu. Talvez ele não dê valor às bare necessities tanto quanto pensa, por falta do contraste, que é o trabalho duro e o esforço brutal para cumprir prazos. Entretanto, sou grata a ele por me mostrar que, depois de tanto esforço, quando o dinheirinho começa a entrar, só o que me importa são as bare necessities, somente as necessidades básicas, e tudo o que me atrai é um momento ao sol, uma risada e um abraço – o que o dinheiro pode comprar passa a ser muitíssimo secundário. Cama, comida, roupa limpa, afeto. Necessidades básicas. Bare Necessities.
A tradução sempre nos leva a novos caminhos. E a descobertas sobre nós mesmos.
Primeiro, a gente pensa que está se matando de trabalhar por causa da grana. Depois descobre que não, como provei a mim mesma ao ajudar uma amiga na primeira parte dessa maratona de um mês de dias longuíssimos na frente de um micro, com uma tradução que se pagava nada ou a miséria que ela receberia, dava quase no mesmo.
Não é pela grana.
Não é por fama (essa não existe para o tradutor, exceto entre seus pares, o que para mim não é grande coisa, mas já ajuda).
Não é por nada, exceto vocação e amor por produzir algo que permaneça.
Mesmo que passemos uma semana sem sair do escritório.

Há quem goste. Juro.


P.S. -- E nesse meio-tempo, de ontem para hoje, ganhei: dois "Eu te Amo" (de alguém cujo "eu te amo" pós-caso de amor que não deu em nada representa muitíssimo mais do que aquele "eu te amo" que ele poderia ter dito quando tentávamos ter um romance, e do meu irmão, que sempre foi todo emoção e suas emoções atualmente têm sido límpidas e belas) e um "meu amor" (meu Guri faz aniversário e eu é que me sinto presenteada com suas palavras ternas) que parecem vir do nada, mas refrescam o coração. As pessoas costumam ser gentis e demonstrar que gostam da gente, mas fazia tempo que eu não ouvia essas palavrinhas, e vindo das pessoas que vieram, sei que são verdadeiras. Espontâneas. Não "cavocadas" ou provocadas.

Sou ou não sou feliz? Hein? Diz aí! :-)

6 comentários:

Anônimo disse...

Dayse, quando eu crescer quero ser igual a você! :-) Ler sua paixão sobre ser tradutora trouxe lágrimas aos olhos desta aprendiz. Me lembro de admirar seus emails na lista de tradutores que já não acesso há algum tempo. Hoje cheguei ao seu blog pelas mãos de uma amiga. E eu fiquei muito grata! A ela e a você.

Anônimo disse...

Que bom saber que voê é tão feliz e realizada,e que tem um bom relacionamento com sua mãe e seu irmão.E principalmente saber que conseguiu dormir bem,todos os dias dou uma olhadinha no seu blogger pra saber notícias tuas ou pra compartilhar um pouco do teu mundo.Que agora também é meu pois me sinto parte dele,e me sinto mais perto de ti que nunca.Te conhecendo da maneira que eu sempre sonhei quando era adolescente.Passei muito tempo tentando te encontrar aqui no mundo digital,finalmente consegui.
Voltando a questão dormir bem,pra mim é fundamental,em toda minha vida tive pouquíssimas crises de insônia e foi algo terrível,café eu detesto,mas só tomo banho quente,não importa se é verão ou inverno,TPM é o meu grande desafio,alguém já disse o significado?Aí vai:
" TÔ PRONTA PRA MATA "
Somos tão semelhantes e tão diferentes.Mas a porção de sangue que corre nas minhas veias corre nas tuas.Tua irmã de verdade eu não sou,queria ser tua filha quando criança e não pudi,desejei ser tua amiga e não consegui.MAS aqui me sinto tão perto de ti como sempre quis estar.

Anônimo disse...

Ufa! Cansei só de imaginar...

Anônimo disse...

Olá! Estou divulgando o meu blog e meu site: www.ilustrada.ppg.br! Abraços!

Anônimo disse...

Será que fica chato se eu disser de novo que vir aqui é vir pro meu refúgio, é renovar esperanças, é estar em um lugar inteligente e com sentimentos como em tão poucos?????? Espero que não...
Como é bom te ler! E como é bom poder te dizer isso!
Como é bom ler sua paixão por sua profissão, seu trabalho... Vc sabe da minha pelo meu, paixão que estou descobrindo, tudo muito novo... Tô pensando vc, dps de anos, confirmar que é isso mesmo, que está no melhor caminho, deve ser d+. Parabéns, fico muito feliz por vc.
Só fico com ciúme de não ter nem uma mençãozinha, um e-mail, um oi, scrap, qq coisa! Morro de ciúme das pessoas que amo.
Não sabia que vc usava o msn..... Poxa....
Bjo enorme e ótimo Carnaval!

Anônimo disse...

Eu quase gosto mais de desenhos animados que filmes e ainda me lembro do primeiro desenho animado que vi na minha vida , e do segundo e do terceiro até.Eu achei muita graça ao post e, por acaso a história do Mogli eu diria que faz lembrar a história de Victor o " menino selvagem", ou "Tarzan" e pode levar a sérias reflexões filosóficas. Mas, é apenas um filme bonito.Interessante esta escrita...