26.11.04

Cultura inacessível

(Alerta: esta crônica foi escrita com ira. Considero a ira uma emoção saudável, mas tento não demonstrá-la demais neste blog -- blogs parecem ter obrigação de ser amenos -- e não mostrar em excesso minhas opiniões mais "radicais")



Livros são artigos de luxo.

Em um país em que o salário mínimo é 260 reais, um bom livro de ficção custa entre 30 e 80 reais.

Sou uma mulher que sustenta a si mesma, à casa e à filha. Minha renda não é desprezível e, ainda assim, ao ver o preço de 70,00 de um livro de suspense que desejava muito ler, desanimo.

Setenta reais = um bom "ranchinho" no supermercado. Ou uma boa calça jeans. Ou dez ingressos de cinema. Ou duas jantas razoáveis em um restaurante. Ou quase cinqüenta litros de leite. Ou bastante gasolina... para rodar e olhar a natureza, quase que a única coisa gratuita.

Num país em que o povo assalariado sequer pode fazer três refeições decentes por dia, um livro é um luxo, que não vem nem por último na lista de gastos. Não vem é nunca.



Tentando vender, as editoras encolhem os livros. Agora, parece que nenhum autor escreve livros com mais de 120 ou 150 páginas. Mentira. Escrevem, mas não podem publicar. As editoras só publicam livros traduzidos e sucessos comprovados de vendas em seus países de origem.



(Creio que o leitor já está farto de me ouvir falar de um certo original de 400 páginas, que atrai editores e, ainda assim, continua no arquivo-morto aqui em casa...)



Editoras mais "inteligentes" em termos de marketing chegam ao absurdo de produzirem livros para "adultos" com 129 páginas, das quais 70 são de ilustrações (como se o leitor fosse incapaz de formar sua imagem mental daquilo que lê), com textos tão ridículos que quase me deixam catatônica, em choque total. Isso é a literatura moderna. Isso é a enganação geral que se pratica numa parte do mercado editorial, para a sobrevivência das editoras.



E vamos jogando tudo o que presta no lixo. Abaixo as históricas complicadas, as tramas ricas, os "volumões", os escritores novos com algo a dizer. Enriqueçamos aqueles que falam ao "povo", como cantores de rimas pobres e adolescentes escritores que abreviam suas palavras mesmo em textos impressos como livro, acreditando na identificação imediata com seus pares que navegam na internet (lendo blogs infelizes que conquistam multidões de fãs)...



Música é artigo de luxo. Digo -- música. Não estou falando de coisas que começaram a ser aceitas, na última década, como música -- mas não passam de uma sucessão de erros gramaticais e chavões pendurados debilmente em uma melodia (?) pobre e que consegue, no máximo, arrastar o nível "cultural" do país para o esgoto mais próximo.



Se música não fosse artigo de luxo, veríamos mais Mozarts, mais Orquestras Sinfônicas de Londres, mais Villa-Lobos ou mais regravações de Porters ou Gershwins consumidos avidamente, em uma saudável revolta do povo, uma (re)"descoberta" do que é música. Mas música é artigo de luxo. Nem fica bem tocar Beethoven en qualquer lugar, ultimamente -- o incauto ouvinte corre o risco de ser linchado, por causa "daquela barulheira sem sentido".



Num país em que CDs piratas se espalham pelas calçadas sob o sol do meio-dia, com reproduções desbotadas das capas do lixo que se passa por música, por que lançar canções trabalhadas, executadas magistralmente ao piano, ou com letras verdadeiramente preciosas?



É claro que Rita Lee me enfurece por pegar este trem, mas ela tem razão -- está tudo virando b...



Ironicamente, sou profissional das elites -- eu, que não tenho nem tempo para ler, muito menos comprar aqueles livros pelos quais tenho convulsões de desejo, ao entrar em uma livraria.



Sou profissional das elites, traduzindo romances de suspense para quem pode pagar por eles, espalhando contratos milionários para as multinacionais, semeando autoconhecimento inútil entre dondocas entediadas, ensinando mamães sem noção a cuidar de seus rebentos através das palavras de algum obscuro pediatra americano...



Ironicamente, quase todos os livros que leio são os que eu mesma traduzo -- e quando as editoras me mandam um exemplar prontinho daquilo que fiz... para que serve o livro, se não para ficar esquecido em algum canto, dentro de um móvel, por total inutilidade para mim, que não possuo a vaidade necessária para expô-los à visão de todos, como mostra de minha nobre profissão?



Faz-se urgente uma mudança radical de visão, neste país, para que a cultura não seja algo acessível apenas para aqueles que já a têm, mas não tenho grandes esperanças, quando "livro" vira palavrão, quando "biblioteca" é uma palavra esquisita que designa algo que existia antes da internet e quando a soma de um corpo desnudo, gestos obscenos, desafinação e analfabetismo agora é "música".











Um comentário:

Anônimo disse...

É isso mesmo, Dayse. Assino embaixo.
Beijo.