12.11.05

Diário de Uma Mulher Comum V (Túnel do Tempo)

Estou de mudança.
No jardim, plantas mudam de lugar. Lá vai minha mãezinha, aos 65 anos (aparência e vigor de 55), cavando e tirando para ela as arvorezinhas que plantei. O pé de chuchu (é com ch ou x?) não vai chegar a dar nenhum para mim, só para os vizinhos no outro lado da cerca. A goiabeira, essa só dá frutas bichadas mesmo, e branca. Ai, que nojo de goiaba branca (apesar de eu sempre ter chamado minha filha de "bichinho da goiaba branca"). Roseiras juntam-se a outras no outro lado da cerca, onde minha ex-vizinha (minha mãe) tenta criar espaço. O abacateiro plantado por minha Letícia, com suas mãozinhas de 6 anos de idade, nem chegou a dar frutos ainda e não dá pra mudar de lugar. Meus jasmineiros desta vez florirão sem mim, e parecem adivinhar algo, já que mesmo carregadinhos, ainda não desabrocharam. Estão atrasados para que eu sofra menos.
Coisas, coisinhas e coisões. Tem de haver um destino para tudo.
Quase desanimo frente à missão terrível de limpar tudinho, deixar tudo novinho em folha para chegar como se fosse eu também nova no apartamento novo onde desde já depositamos nosso sonho de felicidade pelos próximos 7 ou 8 anos.
Sou cigana, admito. Amo mudanças.
Esta não estava prevista, 7 anos atrás. Achei que envelheceria aqui, mas sonhos frustrados no terceiro mês após minha mudança para a minha casinha linda, meu chalé de madeira planejado e pensado por mim, me tornaram um pouquinho amarga demais para poder curtir aquelas ilusões tão doces que tinha ao mudar para cá.
Mudo-me porque quero.
Ninguém me força. Meu irmão quer me amarrar à figueira da minha mãe, e já acorda de manhã dizendo, ao chegar ainda grogue à cozinha da mãe: "Não deixo ela ir. Não deixo." I'm sorry, bro, vais ter de ser ajuizado sem mim pra te puxar as orelhas.
Mudo-me porque há outros sonhos esperando por mim e por minha filha, e como eu não vivo sem sonhos e sem planos, deixo de lado a falsa segurança na qual vivi nos últimos sete anos.
Resolvo limpar meu balcão do escritório. Pequeno, 1.20m no máximo. Mas meu Deus!!! Minha vida está ali, e em nenhum outro lugar da casa (ah, sim, há mais um pedaço de mim na lavanderia, escondido em caixas há 7 anos, diários e livros).
Depois de 3 horas, não cheguei nem à metade da limpeza que deveria fazer, porque simplesmente não resisto a olhar cada papel, cada envelope no qual não tocava há muito tempo.
Álbuns de fotos com saquinhos plásticos vazios, de onde tirei todas as fotos onde aquele que prometia ser meu homem para sempre costumava estar. Vejo-me mais jovem, descubro que era linda e me achava feia (no news, here). Vejo-me em fotos de outras mudanças. Ali, mudando-me do apartamento que adorava, porque depois da morte do meu irmão não consegui mais sobreviver lá, sabendo que minha mãe precisava de apoio (e eu também). Fotos de minha chegada ao apartamento novinho, com o pai da Letícia -- ah, seríamos tãããooo felizes! --, eu com sorrisos gigantescos. Eu nem sabia que conseguia sorrir tão amplamente naquela época. Mas parece que fui feliz -- o sorriso era real.
Gatos siameses me olham, nas fotos. Ah, esse era o número um, o Kadish. Morreu de leucemia, como meu pai. Como meu outro siamês, Sean, como minha outra siamesa, Nikita. Aqui parece que se morre muito de leucemia.
CD-roms que não servem pra nada e que um dia foram preciosos. Manuais de equipamentos que nem tenho mais. Fios, cabos, tomadas, sacos plásticos enormes que "um dia" poderiam ter uma finalidade. Agora têm. Guardar todo o lixo que sobrou da tecnologia em rápida transformação.
Meus diários.
Eu tinha 25 anos e aquele ano marcou o resto da minha vida. Naquele ano, vivi tantos, tantos, mas tantos amores que, após isso, enjoei. Depois daquele ano, a vida nunca mais foi a mesma e nunca mais amei igual. No meio dele, uma depressão das maiores, na qual escrevi que minha inútil vida não estava levando a nada e nunca levaria. Que eu jamais teria um filho (o que sempre quis mais em minha vida).
E ali, ao lado do diário, dois exemplares de jornais. Sei o que há neles. Notícias banais de um dia da criança em 1995. Acontece que jamais colocarei fora esses jornais. 12 de outubro de 1995, a data que consta neles, é o dia em que a filha que achei que nunca teria, e da qual sempre senti saudade, nasceu. Bem depois dos 25.
Eu tinha 25 anos e amava com delicadeza, generosidade de intenções, muita paixão e completa devoção um uruguaio que voltou apenas mais uma vez e frustrou toda a minha alegria naquele ano. Sem emails, sem telefone (só no trabalho), dependia de cartas. E ele levava séculos para escrever. Um dia, escreveu para dizer que estava desistindo e que nunca viria de vez. Acabou.
Eu tinha 25 anos quando conheci meu mosquito elétrico, o Luís Henrique, meu amigo mais antigo (meu amor mais bonito). No diário, consta: "Volto a trabalhar após minhas férias e vejo dois olhos brilhantes me olhando fixamente cada vez que interrompo a digitação. Um cara magrinho, elétrico, cheio de idéias, tagarela e inteligente." Nunca namorei o LH. Acho que naquele ano não conseguia esquecer dois olhos muito negros, cabelos também negros e encaracolados e pele morena de um cara muito alto e muito, muito lindo que me dizia com voz grave e suave que me "estrañava", mas não teve ousadia para deixar seu emprego de funcionário público (suspiro) e acabou engravidando uma mocinha, casando sem alegria e tendo uma vida de cão (pelo menos durante os anos em que o acompanhei de longe, sabendo dele através de amigos).
Eu tinha 25 anos quando me decepcionei com um amor estrangeiro, chorei como louca pelo Luís Henrique (ah, sim, eu o amava, mas como eu o odiava!!!!, e era recíproco, o amor e o ódio entre nós, já que cada um mantinha um amor idealizado por outra pessoa e víamos um ao outro mais ou menos como algo a fazer enquanto o outro não vem). Hoje, sobrou algo doce disso. Somos amigos. Não sei se ainda sabemos amar. Eu não sei mesmo. Acho, sinceramente, que não consigo mais amar.
Descubro-me, dentro de um balcão. Choro comigo mesma, por quem fui.
No fim, levanto-me rindo, chorando e rindo. Como é que, afinal de contas, consegui ser feliz, pelo menos tanto quanto eu posso ser, pelo menos muito mais do que julgava ser capaz de ser, quando tinha 25 anos?
Naquela época, eu não ria. Hoje sou a própria Dona Sorriso. Aos 25, eu era a maior narcisista-egoísta-depressiva-inconstante-volúvel do planeta inteiro. A mais frágil das mulheres, que muitos queriam proteger por considerar até meio louquinha. Insegura, confiava apenas na minha aparência, porque no resto -- Virgem Santa, que desastre era minha vida. Ser louquinha não é mais charmoso. Perdi a insegurança. Sei bem o que eu quero (na época queria tudo e todos, todas as sensações, por falta de um senso de futuro. O futuro pra mim era um buraco negro e cheio de monstros com dentes afiados).
Melhorei muito. Já consigo suportar minha própria companhia -- com mucho gusto -- e não preciso mais ter dez paixões simultâneas para achar que valho alguma coisa. Descobri que meu valor não está no número de caras que me desejam, fingem me amar ou realmente me querem. Não que eu não goste de homens, aiaiai. Continuo tão tarada por eles quanto sempre fui. Mas não preciso deitar com todos os que gosto. Prefiro não, para falar a verdade.
Na verdade, o processo que começou naquele ano só terminou mesmo dois anos depois, quando tentei me matar tomando champanhe com Reativan (excitante) e quando senti o mundo escurecendo corri pra vomitar. Acho que vomitei tudo o que havia de errado em mim e criei coragem de mudar tudo às favas -- homens, emprego estável -- e cair com vontade em um sonho -- ser tradutora. Deu certo, jogar tudo pro alto. Amadureci só aos 27 anos. Mas valeu a pena ser tão tarde, porque não me arrependo de nada. Nadinha. Vivi todas as paixões que desejava viver em minha vida e não preciso mais provar nada -- nem a mim mesma, nem a um homem, nem a ninguém.
Daqui a vinte e cinco anos, acho que, pelo rumo das coisas, serei a perfeição em pessoa, se chegar até lá ;-)
Vou me mudar. Por dentro e por fora. De novo.
E gosto muuuuuuuuito disso.
Desejem-me sorte, e que eu consiga sobreviver aos preparativos da mudança, sem ser tragada pelo Túnel do Tempo. Mesmo porque não consigo queimar meus diários. Sou minha time-eater, mas preciso dos diários pra provar que o passado existiu.

4 comentários:

Anônimo disse...

Tô aqui. Ia dormir, mas dei uma olhadinha antes no e-mail e vi tua msg me dizendo pra vir aqui. Fiquei pensando se tivesse vindo sem vc falar, como seria. Na verdade me identifiquei muito pouco. O que me chamou a atenção foi o mexer em coisas que estão quietas, paradas, papéis, fotos... Minha escrevaninha precisa ser arrumada há muito tempo e minha mãe me cobra muito isso. Eu arrumo um pouco e paro, como vc, pq é difícil, ela não entende que é difícil mexer ali.
Como sempre vc me emociona.
Ao contrário de vc, não gosto de mudanças. Qdo tenho q mudar de trabalho, ou as coisas de lugar, me irrito. Qdo li vc falando das plantinhas então, deu até tristeza... Eu não teria coragem de abandoná-las! Vc vai mudar de cidade? Pra onde vc vai?
Tb tenho diários. Nem cogito jogá-los fora. Parei com eles aos 22, acho.
Tem um pouco de desilusão nas suas palavras, na sua vida... O futuro que vc pensava, que todos pensamos aos 25, não é o que vc tem agora. Não que isso seja bom ou ruim, há um pouco de cada.
Boa sorte, boa mudança. E obrigada

Anônimo disse...

Mudança : temor e desafio. Reciclar, jogar fora, começar de novo. Expectativas, novidades.

bjs

Anônimo disse...

Eu joguei fora os meus diários faz tempo. Mas nem por isso deixei de mudar. ;)

Boa sorte. E creia, vai ser ainda melhor.

beijo grande.

Márcia

Anônimo disse...

Posso ser atrevido? Vc não precisa dos diários, vc precisa escrever. São textos a cada dia estão mais gostosos. Eles nos prendem, nos faz querer mais. Que droga foi essa que vc botou no tinteiro?