28.12.05

Pepys


Diários são coisas incríveis.
Quando lemos relatos em forma de diário, parece-nos que o tempo parou. Isso aconteceu quando reli meus diários (foi difícil me ver depois, passados 20 anos, porque minha capacidade de mergulhar nas letras levou-me de volta à época dos meus escritos como se todas aquelas pessoas -- reais -- também tivessem congelado naquele ano em que escrevi e descrevi tantos acontecimentos que transformaram minha mente -- e meu coração).
Tenho "perdido" horas de sono lendo apaixonadamente o diário de alguém fascinante, e tenho me transportado para seu mundo.
Sempre que fecho o livro, que me conquistou sem que eu tivesse chance de fugir, vejo-me presa ao mundo de Samuel Pepys, da Londres da década de 1660.
Samuel Pepys (1633-1703) escreveu (se não me falha a memória) doze diários, à luz de velas, tarde da noite, e só parou seus relatos por medo de ficar cego (lendo e escrevendo à luz bruxuleante das velas, o astigmatismo a pronunciar-se, ele, tão temente sempre a qualquer problema de saúde que naquela época de medicina precária poderia levá-lo à morte, decidiu então parar com seus diários...).
Filho de pais humildes, o quinto entre onze filhos, ele ascendeu posições e durante o reinado de Charles II manteve cargos de confiança, conquistou fortuna, manteve amantes, divertiu-se muito com todas as peças teatrais que pudesse assistir, leu muito e manteve princípios morais estranhos, mas fascinantes.
Ele, por exemplo, não deixava passar a chance de lucrar algumas libras em um negócio com fornecedores de cordas ou madeira para navios, mas então fazia uma promessa a Deus de não gastar mais do que já gastava em roupas... E um mês depois gastava uma fortuna em um terno de seda. Prometia a Deus não beber mais vinho, orava e cantava salmos, ia a até dois cultos em sua igreja em qualquer domingo, mas ao passar por vielas não resistia e entrava nos cabarés, onde qualquer beldade o atraía e, mesmo quando não "fazia tudo o que desejasse" (em suas palavras), ainda que beijando apenas os seios das damas, gozava sozinho por suas próprias mãos e lá se ia para casa, alegre e feliz.
Samuel Pepys não tinha pena de chicotear um moleque e ainda se queixava de que, ao fim do dia, seus braços estavam doídos pelo esforço...
Era um homem interessado por tudo -- por gente, por dinheiro, prazeres e conhecimento --, tendo frequentado a Royal Society e conversado com Boyle e outros "filósofos" (palavra da época para "cientista" ou "físico") eminentes. Ele regozijava-se com suas conquistas materiais, mas ao mesmo tempo confessava que não conseguia aprender nada nas aulas particulares de multiplicação e matemática "avançada" que tomava, sendo incapaz de calcular corretamente quantidade de cordas ou madeira necessária para a construção de um navio, ainda que os carpinteiros lhe explicassem até cansar. E ao prestar contas sobre suas compras, fazia cálculos básicos mentais, aproximados -- e vibrava quando conseguia, de algum modo, obter lucro, o que não acontecia sempre, já que se enrolava em suas contas e em suas explicações. A prática de lucrar como atravessador é antiga e a corrupção não era novidade.
Samuel Pepys passou para a história, mas ao ler suas palavras transcritas de suas anotações taquigráficas, vemos um homem simples que, ao galgar posições e conhecer personalidades da nobreza inglesa, ainda deixa transparecer no diário seu deslumbramento, suas fraquezas, seus preconceitos e sua ignorância sob sua capa de cavalheiro. Entretanto, ele tentou, fez e venceu na vida, tendo como única frustração o fato de não ter tido filhos (apesar dos conselhos de uma rodinha de mulheres, em um batizado, para que levantasse os pés do leito, mantivesse a barriga quente e as costas arejadas, usasse cuecas folgadas e outros detalhes que facilitariam a concepção). De um modo geral, é um homem (foi, melhor dizendo -- é fácil esquecer que, 300 anos depois, não há mais nada dele) fascinante, apaixonante, que jamais imaginaria que uma mulher num país que mal começava a existir em sua época, hoje usaria um meio "mágico" de comunicação à distância para contar a outros que o conheceu e partilha, todas as noites, daquilo que ele viveu nas madrugadas gélidas da Londres de 1660-1669.
Descobri seu diário por acaso em um sebo e eu, que jamais tinha ouvido falar em Samuel Pepys, agora vejo-me envolvida com Lord Sandwich, The King, Ms. Lane, e seus inúmeros amigos.
Agora, tento imitá-lo anotando meus gastos, controlando despesas, fazendo balanço de dívidas e promessas a mim mesma de aumentar minha "fortuna" (fortuna = dinheiro em mãos, porque se há algo que jamais terei é dinheiro guardado em abundância...).
Seus diários começaram a ser publicados na década de 70, e o livrinho que leio é uma compilação de "melhores momentos". Com sua sede por livros, Pepys completou pouco antes de morrer sua meta de ter 3.000 livros em sua biblioteca particular. Que foi parar no Magdalene College, em Cambridge, intocada por muitos anos e ainda nas estantes originais até hoje.
Pepys só há em inglês, infelizmente, mas descobri seu diário na Internet, em
http://www.pepysdiary.com/. Eu ainda prefiro ler o livro em papel, mas quem se interessa por outras eras, outras culturas, outros hábitos (como a dama que visita Pepys fazer cocô em uma bolsinha sob o vestido e ser flagrada pelo dono da casa ao perceber o rubor nas faces da visitante), e quer "ouvir" relatos em primeira mão sobre fatos históricos (como o Grande Incêndio de Londres e a Peste), o diário de Pepys é um prato cheio.
Divirtam-se.

2 comentários:

Anônimo disse...

Como diria o Spock : "fascinante"...

Anônimo disse...

Experimente: Diário do ano da peste, de Daniel Defoe. Tem em inglês no projeto Gutemberg (http://www.gutenberg.org/browse/authors/d#a204)
Resenhei a tradução faz uns anos. Um relato jornalístico da peste bubônica em Londres. Dá para desconfiar que foi dessa fonte que Poe bebeu para escrever Rei Peste (King Pest).

Também já ouvi falar que Chaucer escreveu os Canterbury Tales esmagando os olhos sob as velas. Assim como Antonio Vieira e quem mais produziu grande obras antes da luz elétrica ;-)

Jamais ouvira falar de Pepys. Nada como uma vadiada pelos sebos "vez inquando..."
Beijo.