10.4.05

Hoje chamei um pastor de ignorante, na frente de pelo menos 20 testemunhas, sendo dessas quatro adultos e 16 crianças de 4 a 11 anos.

Ter comprado minha casa ao lado de uma igreja, a princípio, pareceu-me bom augúrio.

Agora só posso dizer que, *apesar* da igreja, ainda acredito muito em Deus.

Que melhor maneira de me colocar à prova que me colocando para residir ao lado de um hospício cujas sessões de liberação dos demônios primitivos infantis iniciam-se às 18 horas e vão até às 22.30?

Explico: nada tenho contra o culto.

Nada tenho contra os fiéis.

Nada tenho contra seus múltiplos ensaios do “grupo musical”, que duram geralmente três horas seguidas com ensaios de bateria, guitarra e voz desafinadas.

Nada tenho contra o *seu* Deus (que duvido que seja o meu).

Tenho tudo, tudinho, contra umas 30 crianças berrando enlouquecidas enquanto os adultos reúnem-se dentro da igreja para o culto.

Tenho tudo contra ter de suportar berros, gritos, passos a correr na brita, bem ao lado da janela onde eu (por carma, por burrice ou ingenuidade) construí meu escritório, onde tento traduzir materiais que invocam os deuses da Ciência, das Artes, da Literatura, o Deus – também este.

Tenho tudo contra viver há 6 anos neste inferno que eles chamam de religião e que eu chamo de culto à ignorância.

Olhem, sou bem zen – menos quando perco o controle. Sou muitíssimo cristã (e não duvidem), menos quando vejo pela frente a soberba e arrogância de quem se julga O Próprio Deus Com Direito a Tudo.

Sou zen, e isso é fácil de comprovar -- ninguém mais neste planeta suportaria ensaios barulhentos, festas enlouquecedoras (as criaaaaaaaanças, lembrem-se das criaaaaaaanças, que a tudo têm direito, na visão do pastor), cultos cantantes e berrantes durante 2.190 dias, quase todos os dias. Juro, com a mão sobre a Bíblia. Sou zen como ninguém.

Perco o controle com essa gente mais ou menos (menos) uma vez por ano.

Este ano aconteceu hoje.

O pastor faz-se de surdo quando, às 22:30, eu lhe digo que cale aquelas crianças, porque a minha criança tem aula de manhã e precisa dormir. O pastor vira-me as costas, primeiro, quando lhe digo que minha paciência está acabando. Quando eu, do outro lado do muro, lhe digo então que pode ir-se, mas que levantarei a voz para que possa me ouvir mesmo assim, ele finalmente volta-se e se coloca à minha frente (do outro lado do muro, no terreno de seu Deus, protegido por seus fiéis, enquanto eu, pobre pecadora que trabalha aos domingos, pobre infeliz que não compareço aos seus cultos, coitada de mim que fumo, ignóbil euzinha que ouço Chico Buarque durante seus ensaios cantando “Cálice” (e não foi de propósito, só depois me dei conta...)... enquanto eu estou ali, sozinha, mas nem por isso menos armada.

Apelo para seu bom-senso. Rogo para que antecipe o horário de seus cultos em meia hora e que avise às crianças que após as 22 horas não podem gritar (por mim, nem suspirar, mas não lhe digo isso). Suplico que discipline as crianças. Pergunto-lhe, depois que vejo todos os meus argumentos respondidos apenas com uma frase ("Isso aqui é uma igreja, precisamos fazer nossos cultos e a senhora é que precisa encontrar um jeito de aceitar as conseqüências") o que há de religioso em 30 crianças berrando e correndo em torno da igreja às dez e meia da noite. Ele enfim admite que isto não deveria acontecer. E estraga tudo dizendo que eu odeio ver gente feliz. Que as crianças berram de felicidade, e que eu não suporto ver alegria. Que berro de criança às 22:30 não é indisciplina, não é desrespeito aos vizinhos (afinal, quem mais está se queixando, se não euzinha sozinha e louquinha?). Berro, grito, correria de criança junto à janela do quarto de dormir, fazendo um efeito "stéreo" na cozinha e no escritório, reverberando até o banheiro, enfiando-se no outro quarto e trovejando pela sala? Ah, minha senhora, o que há de mal nisso? Nada, se fosse uma criança (não lhe digo que eu daria uma bela palmada na bunda da mal-educada pra ensiná-la a respeitar o direito de silêncio dos outros). Sendo 30 crianças (fim-de-semana passado eram 70...), é um pouquinho mais do que eu consigo suportar. Só um pouquinho mais do que um leve incômodo, sabe?

Encerro tudo. Daí para a frente não há mais nada que eu possa dizer que possa penetrar naquela imitação de cérebro.

Guardo minha arma (minha loquacidade, ora!) no bolso que não tenho em minha camisola, cruzo os braços, olho-o bem nos olhos e lhe digo:

– O senhor é um ignorante, pastor. Passar bem, acabou a negociação.

Ele agradece (sua tentativa de ironia no agradecimento não funcionou). Simultaneamente, voltamo-nos e cada um entra – ele para seu templo da ignorância, eu para minha casa onde minha filha agora perdeu o sono.

De vez em quando, uma vez por ano mais ou menos (menos), eu dou uma de louca.

Hoje foi minha vez.

Mas me fez tãããããoooo bem!

P.S. - Sou boa gente, juro que sou. Mas sou mulher, sozinha, e não sou Batista de religião, só de sobrenome. Tenho de defender a mim mesma, porque Deus está do lado deles (nas palavras do próprio pastor. Se isso for verdade, então estou vivendo em um universo paralelo há 6 anos sem perceber).

Um comentário:

Anônimo disse...

Dayse,
Uma amiga, certa vez, me contou que falou com um pastor, em circunstâncias semelhantes:
O meu Deus não é surdo, converso com ele baixinho...

No Rio lembro que as igrejas tinham que cumprir a lei do silêncio, às 22 horas.

Agora veja o cartaz que li outro dia numa loja:
If your child is noisy, please take him outside until he regains his composure
Tinha um recorte de revista com o retrato de um neném aos berros, embaixo.

Aqui até cachorro não late. Se late, o dono dá uma puxada na correia.

Lembra-me minha mae, que ao reclamar dos latidos incessantes de dois cachorros durante as madrugadas, foi ao vizinho pedir que tomasse uma providência.
A vizinha falou toda alterada: como é que a senhora quer eu faça o cachorro nao latir?? ele é um bicho.

Meus pais sempre tiveram cao pastor, e minha mae sabia muito bem que cão se educa, numa boa.

Enfim.

Daysoca,
que tal investir em janela de vidro duplo? Isolaria o som, e de quebra, no inverno, ajudaria a manter a cabana mais quentinha.

As construçoes aqui sao todas assim (e com razao) e notei, com pesar, que eu nunca ouvia os passarinhos pela manhã.

Agora, com a primavera, dormimos de janela aberta. E de manhã é aquela festa da passarada.

Beijocas,
Su
Canadá

faz uma reza braba para o pastor :-)