19.8.04

Dez Minutos - Ao Bernardo Horta

Era setembro, dois anos atrás. Eu ainda embalada pelos sonhos plantados em mim por uma editora que me descobrira sem que eu a procurasse. Naquele momento, essa ilusão de vir a ser lançada já durava nove meses, o tempo de uma gestação, e eu acalentava esse bebê com mimos tais que, ao ser fixado um prazo final para a entrega do original trabalhado, lá fui-me para um hotelzinho em Gramado, durante quatro dias, trabalhar o finalzinho de minha primeira história, isolada e feliz (adoro estar isolada do mundo, adoro caminhar sozinha por lugares estranhos, adoro sentar em parques que não conheço e observar o mundo como se a ele não pertencesse).
No fim daquela primeira noite no hotel simpático e já cansada de olhar pela sacada e ver a ruazinha em curva e declive, as luzes da cidade turística e a programação da TV enquanto revisava o que havia feito até aquele instante, tocou meu celular e, durante os dez ou quinze minutos seguintes, tive a conversa mais generosa, acalentadora e sexy nos últimos tantos anos.
Meu revisor-copydesk me ligava. Bêbado. Ouvindo Beatles. Soltinho, leve e tagarela -- mais do que nunca --, primeiro um pouco hesitante, depois liberando-se em conversas confusas. Imagino que todas as conversas com o Be eram confusas, todas as conversas que ele tentasse manter soariam assim -- embriagadas de vida, de insatisfação e ironia, mas com tanto gusto e inteligência que contaminava seus interlocutores, fazendo-os esquecerem-se de que ele, às vezes, também se esquecia da gente, perdido em seus redemoinhos cerebrais constantes.
Meu amigo gay ou bissexual - nunca consegui definir -- derramava-se em elogios. Colocava-me para cima, animando-me quando eu quase já abandonava o "Luca" -- meu personagem que o encantava. Ele quase me confundia com Luca -- tinha razão, era meu alter-ego masculino esse personagem taradinho -- e, assim, eu a confundi-lo e ele a me confundir, trocamos as palavras mais intrigantes, provocantes e excitantes que já troquei com alguém. Confessamos atração mútua, entre risadas e tagarelices, entre brincadeiras e demonstrações sérias de seu respeito por mim como escritora -- na época, eu ainda julgava que poderia "ser" uma escritora. Com seu sotaque carioca, o Be me elevava à categoria cobiçadíssima de musa de alguém, e eu o elegia quase que meu tudo -- uma vez que conhecia tão bem meus segredos transportados para a ficção, adquirira comigo uma cumplicidade que dificilmente eu daria a alguém.
Naqueles quinze minutos de conversas quase inocentes, sem sacanagem ou tentativas explícitas de sedução, apenas falando com o coração, senti-me como uma das pessoas mais especiais do mundo -- inteligente, audaciosa, capaz de tudo, um verdadeiro sucesso prestes a ser descoberto... Dormi feliz depois que meu grogue preferido, indefinido e lindo desligou e, nos três dias seguintes, graças àquele telefonema e às centenas de músicas nos ouvidos, trazidas nos meus inseparáveis CDs, produzi um final em alto estilo, com direito a um clima para cima, bem bolado e animador para todos que lessem a história.
Até hoje Jann Arden me lembra o Be, quando canta The Sound of... ou quando escuto Ten Thousand Manics com More Than This, que fecharia o filme -- se filme fosse, meu romance de ficção.
A continuação com o Be não foi bonita. Por motivos nunca entendidos por mim -- e creio que nem por ele --, algo partiu-se lá por janeiro. Algo rompeu-se entre nós dois. Algo acabou. E vi-me forçada a acabar com ele mesmo antes da certeza de que a editora há muito já repensava a publicação da minha história, depois da pompa e circunstância com que me tratara durante mais de um ano.
Nunca fui alguém de lamentar a perda de pessoas. Quando se perdem de mim, é porque assim desejam e não lamento. Quem eu quero em minha vida eu nunca abandono, e se me abandonam, aceito. É um direito de quem não me quer.
Mas com o Be, até hoje dá um gosto amargo na boca, vontade de chorar, tremedeira e uma imensa tristeza no peito, quando penso que, por 10 ou 15 minutos, dividi com ele -- e ele comigo -- um coração totalmente exposto, coisa que comigo é uma vez em um milhão. Sou forçada a concluir, no fim, que grandes paixões entre almas são tão poderosas e destruidoras que é melhor nem tê-las. Paixões de corpos acabam. O amor de almas afins, nunca. E a dor que sobra é indizível.
Mesmo assim, Be, talvez alguém possa um dia ler este bloguinho bobo e te dizer que embora não dê para consertar nada, aquele caquinho especial, aqueles 10 minutos, ficarão guardados para sempre comigo, como relíquia de um tempo em que me achei bonita e te amei por seres exatamente quem és, com toda tua loucura, imprevisibilidade, criatividade, exposição de ti mesmo, generosidade, amabilidade, sexualidade e genialidade. Obrigada.

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