23.8.04

Jamais Vu

Desperto em minha cama com a sensação de que não me conheço, não sei quem sou e nunca me vi antes.

Aquele blusão embolado sobre a penteadeira, cujas dobras lembram o rosto de um bruxo? Esse quarto pintado de amarelo clarinho? Aquele quadro com o homem nu de Michelangelo, que lindo? Esses roupeiros e espelhos, de quem são?

Desperto assim. Com sensação de jamais vu, o oposto do dèjá vu, a impressão de que tudo o que se é, o que se viu, é inédito.

Um segundo depois, a realidade vem ao encontro do meu corpo que acordou sozinho, sem minha alma que ainda andava perdida por aí.

Então recordo:

Essa sou eu. A estranha criatura que vai aos confins do mundo quando dorme sou eu – e eu sou uma mulher canhota, pisciana instável, bom coração, com alguma ambição, uma profissão, vida mais ou menos ajeitada, sem catástrofes quotidianas, filha linda, vida boa, quase normal como ser, pouco faltando para ser medíocre.

Então me vem a felicidade das coisas simples.

Percebo, durante aqueles poucos instantes em que volto para mim, que tudo podia ser bem pior.

Com minha satisfação de Pollyanna que não durará nem duas horas, levanto-me sob a luz faceira de uma manhã nova como eu me sinto por enquanto e contemplo, dentro de mim, todos os elementos arrumadinhos da minha psique, que se ajeitam durante o sono e se desfazem aos sabores do dia.

Hoje não lerei o jornal, decido. Pretendo ser feliz por mais que duas horas, na doce ignorância dos alienados, consciente apenas de que ainda sou. Ainda estou. Ainda não me fui nem pretendo ir tão cedo. Ainda existo, timidamente, à margem dos meus sonhos, mais reais que minha existência com freqüência insípida.


Um comentário:

Anônimo disse...

Dayse,

teus textos são fascinantes..

beijo

Iuri